30 de dezembro de 2018

Ano-novo no asilo

"No Senhor confio; como dizeis à minha alma: Fugi para a vossa montanha como pássaro?" - Salmos 11:1

Sabe, minha filha, meu amor
não olhe tanto para o relógio
olhe para mim. Ouça: eu já fui
o que caçava pássaros, assim
como também já fui o pássaro
que viu a mão do mundo
fazer-se laço sobre as asas
daquele que tão azul voava
crendo em aplausos
mas saiba, minha filha
que hoje quero recolher
entre minhas mãos
fracas de tempo
e brancas
de alegria
como este relógio
a face relâmpagos
de todos a quem ofendi
não como se eu recolhesse
um pássaro em pleno voo
mas como a um filhote caído
cujo ninho o vento rasgou.

Ouça: é silencioso o perdão
daquele que pra dentro canta.

Aquele que pra dentro canta
não como se fosse um pássaro
mas como sendo
uma montanha.

22 de dezembro de 2018

Fruta Boca

para Michele Marcial

Fácil te reconheci como amada
porque todos os nossos beijos
são o reconhecimento
dos frutos que eu criança
roubava:

Na saliva leitosa da manga
abraçando com meus lábios
os lábios pequenos
das pitangas
lá de casa

Na língua seivosa de amora
que naquele tempo
fazia do vermelho um selo
como seu batom
que hoje me marca

Na memória que tenho
do sumo puro
em sua boca
de fruto
sem casca

20 de dezembro de 2018

Allegro

Em Vivaldi este estio
do roxo das rosas
no rosa dos rios

Em Vivaldi estes reinos
de belicosos átrios
em pátios amarelos

Em Vivaldi esta flâmula
do vermelho das águas
no azul das chamas

16 de dezembro de 2018

Miss Universo

Algumas pessoas são belas se você olha pra elas por, digamos, 10 minutos. O contorno do nariz passa a fazer sentido com a linha superior da boca, como ilhas se tornando harmônicas quando nomeadas de arquipélago. Substâncias barrocas. Amadas substâncias barrocas!

Outras pessoas, logo quando recém vistas, revelam-se belas, isto é, abrem-se. Luz, imagina-se, luz. Mas ocorre que, se você olha para elas por, digamos, 10 dias, a beleza se desfaz onde não haja amor, gotejando, pois, oh neve!, para ti o Senhor reservou o verão.

Estas pessoas, todas as pessoas, o que fazer? O alimento dos olhos é a admiração contínua, esta é a água que os lubrifica. O que fazer? Nós precisamos escolher todo ano uma nova mulher mais bela do mundo porque não duram: os olhos, a beleza, a mulher, o mundo.

Todas as pessoas, escutai: quando vocês maquiam uma face, a vossa mesmo ou outro disfarce, vocês maquiam um cadáver, morto sob o punhal da vaidade. Retirem este punhal!, porém, e na ferida estará escrita a verdade: haverá Quem contemplemos, sem tédio, por todos os anos da eternidade.

9 de dezembro de 2018

O cansaço que tenho dos corpos no mundo.

O cansaço que tenho destes volumes de pó.

Fazei chover, Senhor.

Fazei chover sobre este cansaço.

E sobre o mundo, fazei chover.

Desmantelai os tijolos que os homens ergueram para tentar cobrir Vossa face.

Limpai do coração carbônico dos homens esta vergonha erigida em templos.

Fazei chover, Senhor, sobre nós a tristeza que só o amor perfeito tem.

Limpai a pele suja daqueles que os espelhos refletem limpos.

Limpai da terra os templos erguidos, fazei tombar a pompa dos tronos.

Limpai de mim, Pai, este ódio que por eles sinto.

Fazei chover, Senhor, adormecei sob águas este calor falso.

Alimentai de água o lodo que comerá nossas obras.

O frescor nas reentrâncias do navio que será necessário.

Fazei chover, Senhor, mansamente limpai.

O cansaço que tenho de todas as coisas que não são Você.

Fazei chover, Senhor.

4 de dezembro de 2018

Instruções para dizer "amados"

para Michele e Deus

Dizer o "a":
este primeiro abrir a boca
deve ser
um dizer e ver ser
toda a boca fazer-se sopro
como se da garganta
sem fôlego
os pulmões clamassem
"oh coração
me dê mais espaço"
emulando em si
a primeira vertigem
ao ver a nudez do outro
ou ao recolher chuva
na polpa da língua
fazer-se
boquiaberto e orar

Dizer o "ma":
unir os lábios em unção
rememorando a união das bocas
a cadência mansa da proa
nas águas intermediárias
necessárias
desta palavra amada
unir os lábios em unção
exige pequena vaidade
exige grande coração

Dizer o "dos":
doação doação oh amor
doação é teu último nome
teu nome de casada
é doação oh vida
dizer contra os dentes
oh língua
o sobrenome desta palavra
e circular sibilante o fim
da plural doação
para fazer
nós três
distâncias mínimas
assim como é necessário
haver amor
para haver amados

2 de dezembro de 2018

Hamlet feliz

Escrever, não escrever, eis onde estão
meus olhos, felizes, sob as marquises
do anseio de criar - mas como escrever
sem aflição, sem chorar outra angústia
que não seja a minha e a sua, como, se
nesta caneta suja a tristeza fez seu lar?

Vou inventar que morri
só pra poder ressuscitar.

29 de novembro de 2018

Nós, cuidadosos

"Por isso vos digo: não andeis cuidadosos quanto à vossa vida, pelo que haveis de comer ou pelo que haveis de beber; nem quanto ao vosso corpo, pelo que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o mantimento, e o corpo mais do que o vestuário?" - Mateus 6:25

Para quem se ancora
no vil cais do agora
- ser bom é difícil.

Pois longo é o ofício
e distante a aurora
dos dias propícios.

Para quem namora
com a presente hora
- ser bom é difícil.

Pois a sede engorda
a fome de ceticismo
que o ansioso arvora.

A quem não agrada
observar os lírios
- ser bom é difícil.

Mas boa será a glória
que fará futuro o riso
de quem agora chora.

24 de novembro de 2018

À voz de muitas águas

"Seus pés reluziam como o metal, quando é refinado em fornalha ardente, e sua voz como o som de muitas águas." - Apocalipse 1:15

Tua voz de muitas águas
Teu amor que a tudo lava
envolveu o meu cansaço
quando até este cansaço
de mim já se cansava
e com Tua larga harmonia
a me guiar sobre rio calmo
me guardou daquelas pedras
que do leito se destacavam
fez nascer um regato claro
onde antes a sede habitava
fez brotar um consolo novo
das margens do meu corpo
a Tua voz de muitas águas

19 de novembro de 2018

Bordado

para Michele Marcial, na ocasião do nosso primeiro aniversário de namoro

A mulher que amo
está bordando.

Faz belos campos e grutas
os frutos com mais sumo
e as histórias da chuva
ela borda
muito mansa lá fora
aqui dentro
a própria chuva.

Enquanto desintegram-se as horas
eu vejo sorrir meu amor, que borda.

E quando ela borda uma flor
esta flor dá testemunho do sol
pela fala aroma de seu amor
sem palavras.

E quando ela borda o traço fino
e azul do rio, a água testemunha
os peixes e o fim da sede
pela azulesa do seu fio
sem palavras.

Mas eu não sendo flor
e sendo pouco rio
dela dou testemunho
com as palavras
sob o mesmo amor
desta tarde águas.

Enquanto desintegram-se as horas
eu vejo sorrir meu amor, que borda.

Porém, esta tarde águas
também está bordando
a mulher amada.

30 de outubro de 2018

A Hora Sexta

"E era já quase a hora sexta, e houve trevas em toda a terra até à hora nona, escurecendo-se o sol; E rasgou-se ao meio o véu do templo." - Lucas 23:44,45

Cada tempo pede a sua espada
que de espinhos cresça da aljava
seu corte contra o norte de amarras.

Cada tempo, sim, guarda sob capas
a fera a ser rasgada pelo ferro, afiado
em seu próprio tempo o corte cascatas.

Mas de todas as capas, de todos os véus
havia o maior, separando homem e Deus
e a espada que o rompeu, amarga lâmina
luz, tinha seu punhal em forma de cruz.

Cada tempo tinha, terá, teve, mas houve
aquele que por amor a todos os tempos
sentiu os cortes do céu, espada
ele mesmo, ele mesmo o fio
da lâmina contra o véu judeu
nas milenares horas de breu.

22 de outubro de 2018

O Profeta - Alexander Pushkin

Num ermo, eu de âmago sedento
já me arrastava e, frente a mim,
surgiu com seis asas ao vento,
na encruzilhada, um serafim;
ele me abriu, com dedos vagos
qual sono, os olhos que, pressagos,
tudo abarcaram com presteza
que nem olhar de águia surpresa;
ele tocou-me cada ouvido
e ambos se encheram de alarido:
ouvi mover-se o firmamento,
anjos cruzando o céu, rasteiras
criaturas sob o mar e o lento
crescer, no vale, das videiras.
Junto a meus lábios, rasgou minha
língua arrogante, que não tinha,
salvo enganar, qualquer intuito,
da boca fria onde, depois,
com mão sangrenta ele me pôs
um aguilhão de ofídio arguto.
Vibrando o gládio com porfia,
tirou-me o coração do peito
e colocou carvão que ardia
dentro do meu tórax desfeito.
Jazendo eu hirto no deserto,
o Senhor disse-me: “Olho aberto,
de pé, profeta e, com teu verbo,
cruzando as terras, os oceanos,
cheio do meu afã soberbo,
inflama os corações humanos!”

poema de 1826, tradução de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher

18 de outubro de 2018

O poetinha cansado

Seus olhos, seus olhos
são tão bonitos! Quão
difícil é dizer só isso
depois de tantos livros...
E vê-los por mim mesmo
sem enxugar a imagem
do negror de seus cabelos
na imagem fosca e boba
da poesia de outros tempos!

Seus olhos, seus olhos
são tão bonitos! E bom
é ter olhos para
por mim mesmo
livre de livros
vê-los.

15 de outubro de 2018

Morphine

O sopro no sax rasga
a noite e faz com que
do negro ventre aberto
com esse cetro
escorra a chuva branca
longa barba de estrelas
gotas de tristeza estética
antiga
esférica perfeita pérola
aos porcos

11 de outubro de 2018

Feriado na roça

para Michele Marcial

Quando te busco na cidade, amor, na cidade
que de mastigar meu coração o fez crescer
é fácil reconhecer a tua face doce
entre a multidão de faces
homogêneas pela amargura
e te distingo, amor, com a facilidade
solene e clara com que Deus conhece
a cada um de nós
porém
quando mesclas
a tua substância bela de ser nas manhãs
e aos campos retiras o teu olhar melancólico
naturalmente o teu olhar bom
eu confundo a tua sombra com o hálito
morno dos cafezais florindo
eu confundo o toque fino do orvalho
com o teu sorriso
e é grande, grande
a confusão dos sentidos.

1 de outubro de 2018

"E ele estava na popa, dormindo sobre uma almofada, e despertaram-no, dizendo-lhe: Mestre, não se te dá que pereçamos? E ele, despertando, repreendeu o vento, e disse ao mar: Cala-te, aquieta-te. E o vento se aquietou, e houve grande bonança." - Marcos 4:38,39

Sejamos delicados, apenas delicados, pois
a planície é mansa no aninhar furioso
do raio
e o rio
aceita sem cólera o tropel muito
disforme da travessia do gado
mesmo que ele se pareça bravio
quando suas águas se turvam
de barro

Sejamos menos o raio, delicados
como a nuvem é delicada
no chuvisco sobre a casa
quase barcos
no leito calmo
assim sendo, mesmo cordeiros,
menos boiada, sim, sejamos isso
barcos cansados! que sobre
Água Viva habitam
e que tranquilos chamam
de banho
a pior das tempestades

23 de setembro de 2018

Farol

"Ele recolhe as águas do mar num vaso, e dos abismos faz reservatórios." - Salmos 33:17

Embora a quilha rente aos turbilhões
dance firmeza na coragem marinheira
e eu, tão salino quanto sul, pareça são
com a vela fina, firme, nas mãos presa
- é Você, ó Luz, que me firma no guiar
enquanto ondeado sofro quando avisto
haver tempestade no grande haver mar.
Embora haja gotas em demasia entre
o Teu leme calmo e meu suor, embora
pareça fria minha esperança ao Te ver
incendiado e tranquilo, Senhor, sei só
que a Ti vou. Meu
sol És. Em Teu
rumo estou.

22 de setembro de 2018

A Harmonia

"Deixo-lhes a paz; a minha paz lhes dou. Não a dou como o mundo a dá. Não se perturbem os seus corações, nem tenham medo." - João 14:27

Irmãos, se a cidade vos engolir
sob os véus de aço de sua língua
rememorem a harmonia: o calor
da mãe, as mãos do dia, as aves
do céu, a face amorosa da vida.

E se numa cela, irmãos, fizerem
com que desdancem sob caóticos
sons de soco tais vossos corpos
harmônicos, busquem neste dia
recordar a música, em silêncio
de paz, onde o coração não grita.

Pois lhes tirarão a honra, irmãos,
lhes tirarão os olhos. E, ante muito
riso neles, deceparão vossa alegria.
Será espesso, irmãos, o sangue
então a vos escorrer pelos poros.
Mas não lhes tirarão a Harmonia.

20 de setembro de 2018

Os círculos de fogo

Quando eu era pequeno
quando eu era criança
minha vó à noite dizia
com a voz que ainda
em ninar me balança

- Que os anjos do Senhor
te protejam, amor,
em círculos de fogo
e que te protegendo
eles te abençoem
em nome de Jesus
e em círculos de fogo

E eu me sentia quente
mais do que ao meio-dia
se deseja algum poente
pois eu ali não apenas
sob o hálito do sol jazia
semelhante ao sentir alheio
que se tem ao ver
algo belo

Ali eu me sentia quente
como no se fundir ao fogo
a espada sonora-se ao martelo
ali eu me sentia quente e via
o dia se fazendo em torno
e jorrar de dentro da noite
íntimo a um grande trono
como as manhãs são íntimas
de roupas brancas e limpas
e meu sorriso se fazia
claro em tantos raios
quando eu respondia ali
infantil em luz
amém

17 de setembro de 2018

Retorno

"E, levantando-se, foi para seu pai; e, quando ainda estava longe, viu-o seu pai, e se moveu de íntima compaixão e, correndo, lançou-se-lhe ao pescoço e o beijou." (Lucas 15:20)

De longe vejo o pai à margem da casa
onde a grama testemunha que choveu.
As longas vestes, a longa barba, o fogo
de suas palavras água, eu as vejo, trilhas,
mesmo longínqua sua silhueta alva e breu
como que tristíssima. Por que eu - fugi?
Do que precisa, além de tronco, um galho?
E as raízes, eu as diviso, ei-las aqui. E o
tempo, eu o reencontro, e ele me cala.

Meu pai, por que eu te abandonei?

Foi o mundo, com seus curvos caminhos
que turvou meu coração, sob as sombras
da muralha, sob os porcos e seus latidos.
Foi o querer ver além do campo de trigo
mesmo já nutrido pelos pães e pelo riso
da mãe em bom calor. Fui eu, meu pai,
mas retornei: pois como viver no reino
sem que eu me apresente diante do rei?
E eis que correm até mim o rei, o amor.

Meu pai, eu retornei. Teu filho retornou.

12 de setembro de 2018

Uma jardineira

Viver sem arrogância
sob a índole das flores
em fluência harmônica
em um lirismo só cores
foi o que quis, ávida
entre lírios enfim feliz
querendo feito verme
viver quente a manhã
das pétalas e dos cheiros
das acerolas e das maçãs
mas não pude - pois que
pra visitar o cerne cheio
dos caules das maçãs
o veio aquoso do sol
mansa amarelada de sol
entre lírios sem arreio
precisava podar os dedos
relvosos dos meus cabelos
como se fossem espinhos!

Que bom minha mão deteve
as lâminas desta sede
de querer podar-me
para poder ser-me.

10 de setembro de 2018

Sobre a auto-ajuda, o meu problema é moral, pois nela é quase norma: se um autor quer vender bem, tem que falar a partir do ponto de vista que anuncia a felicidade estar em primeiro lugar.

Eu, porém, em verdade vos digo: existem centenas de coisas mais importantes do que a felicidade.

A amizade, a integridade, o respeito, a fé, o amor, pra começar, são mais importantes do que a felicidade. As memórias, o cuidado, a lealdade, a gratidão, vem logo após.

E há muito mais.

Há quem diga, como lei, "faça o que te faz feliz". Mas a um estuprador, o estupro deve deixar feliz. A um corrupto, a corrupção deve deixar feliz. A um traidor, a traição. A um cruel, o poder. O que te faz feliz, caro contemporâneo, é menor, se traz infelicidade para alguém, o que já rebaixa a felicidade em relação à empatia, pelo menos.

Ser feliz não é o que importa.

É um unguento santo, enquanto fazemos o que importa.

Eleições

"E o diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o diabo: Dar-te-ei a ti todo este poder e a sua glória; porque a mim me foi entregue, e dou-o a quem quero." (Lucas 4:5,6)

Há um hálito por trás de todo trono
um fedor cuja alma é o riso insano
no ar esculpindo um punho pálido
no ouro em que se sentaram reis
e sábios - mas se do poder sentimos
o odor emergindo em torno uma ilha
há véus cobrindo a boca que lhe iça

Ah! dessa boca só sabemos
que o trono é sua língua

31 de agosto de 2018

Avança, pois sim. Dois cavaleiros, uma fêmea e um macho, destacados de um exército escondido até às flâmulas por trás das árvores. Isso é o avanço do retorno de Cristo. A Segunda Vinda. É uma visão sem olhos, mas táctil por nenhum toque, como o calor de uma cavalaria numerosa que não se vê e não se ouve, circulando a casa só com o morder dos cavalos nos arreios. O que é uma rosa, no lamaçal dos dias, se não um pressentimento?  A baba e o couro. Pois que a segunda vinda é um calor em ondas contínuas, mas alteráveis, conforme a fé, a força e a farinha disponíveis. Uma grande esperança a quem for pequeno muito, uma esperança nenhuma a quem é aqui bem grande. Pois quem tiver exército, vai tentar se defender - e perderá. Pois quem for só e fraco, vai se render - e será salvo.

30 de agosto de 2018

Se tem uma mancha, em alguma das lentes do meu óculos, aquela mancha estará em uma árvore, se eu olhar para uma árvore, e ela estará no mar, se eu olhar para o mar. Se uma gota de chuva cair nas lentes, no entanto, a luz refratada pela água escoará mais luz para os meus olhos. Assim é, também, em relação ao bem e ao mal: quem vê o diabo em tudo, pode ser por estar com os olhos sujos de diabo; quem vê Deus em tudo, é porque está com os olhos limpos de Deus.

27 de agosto de 2018

Chacota no banquete de exposição da Política

Contemplai, contemporâneos, a Política!
Mulher alheia, selvagem, insubmissa
olhando altiva enojada para todos nós!
Contemplai o dentro em luz dessa face
a nudez honrosa de após um desastre
altivez de outrora rainha e viúva cativa.
Dói, sangra, ser olhado em fogos assim
acorrenta negro em véus o desejo de rir
nunca mais, para contemplá-la. Olhem
como seus dois seios são como mordaças
ao pequeno coração, aos quietos lábios
em cujo silêncio oleoso há mormaço
e uma sentida ausência de asas. Olhem
meus irmãos de tempo, como seu rapto
dilata o orgulho nela inédita vaidade
de se enfeiar para nos ver! Política!
É de fato verdade o que diziam
que se a vida dói a todos
a alguns a miséria purifica.

20 de agosto de 2018

As aves do céu, os lírios do campo

Onde agora se vê caos
pode ser que adiante
se veja a harmonia
de Deus, o efeito
de mãos grandes
prenhes de enredo
tecer depois
novos antes

Onde agora se vê seca
pode ser que adiante
de vazantes se encha
a pureza verdejante
cem poços e mil rios
gerados na profundeza
da nuvem mais hostil
da terra mais distante

Onde agora nada se vê
pode ser que não se veja
por ser tudo iluminado
em luz de inédita colheita
gestando no útero
do aparente breu
auríferos céus
para um sol
de nova beleza

16 de agosto de 2018

Lição de palavras nº1

"Faceira" é uma palavra que introduz uma luz, um jeito de sorrir por trás de um olhar envergonhadinho e bom. É feminino até a mais íntima doçura, é feminino em muito ser rósea palavra e recato regatos. Redondos movimentinhos, os dedos tão flores, tem essa palavra. Faz pensar que o amor não é mais que um fósforo de chama pequenina, mas em um mareal de álcool.

13 de agosto de 2018

Tentar descrever a dor de quem se ama, terrível rocha à nossa frente, é demais peso aos ombros da escrita. É possível descrever Deus só narrando as formas de uma face? É possível contar ao cego o prateado dos peixes pelo som que as escamas abrem? Nem as lágrimas de quem se ama, à nossa frente rocha, é possível rearquitetar em letras. Mas chore, chore, chore, eis aqui meu peito, chore. Morte às palavras, se não consigo usá-las como unguento, morte à película das dores individuais no mundo, mas vida às horas existidas dentro do consolo mútuo. Chore, chore, chore.

12 de agosto de 2018

Biomas de mim

Aqui é a floresta dos que se apaixonaram por mim
rente ao mangue dos que muito me odiaram
o cheiro morto dos siris mesclado
ao aroma vivo do sangue das flores no mato
ali é o deserto dos que eu invejava
abandonado vazio o toque da seca sendo
pantanais campos largos pastos e areia
o horror áspero de um nunca encontrá-los
céus e rios e ao mar vou indo
pescando do sal marinho as faces santas ceias
dos que eu menino me embalavam Aqui
guia sou do turista que também estou
arqueólogo biólogo teólogo e rei
jurista e também a lei dos biomas de mim

7 de agosto de 2018

Granizo em Minas

A neve não é carícia
para o abrigo caseiro
coberto e quentinho
da noite dos mineiros.

A neve não.
Mas e o gelo?

O menino pula valentia
quer sair pela porta
e o resto da família
apocalíptica lhe toca
com a voz “Cuidado!
Que o granito é feroz!”
deslumbrante desespero.

E não deixam o menino
sair pra ver o gelo.

Mas o menino ao menos
ouve a mensagem do céu
mesclando as pedras aos trotes
lá fora com dentro o escarcéu
da família discutindo
o celeste gelinho lindo
mais o brancor daquele piso
e socando o cimento
uns dizendo “Foi golpe!”
e outros “Foi impedimento!”

sons grandes e pequeninos
arrebentando vidros
do mesmo jeito.

E o menino bonachão
pula satisfeito

“Mãe!
Tô ouvindo o granito!”

São os discursos do granizo
em ano de eleição.

26 de julho de 2018

Monólogo com o ferreiro

"Se o filho pródigo não tivesse
conseguido sua parte em ouro"

(ele disse, sob a prece do martelo)

"Nunca retornaria ao castelo
paternal, ao maternal seio
de onde veio"

(o fogo crescia ao soprar do fole
como o muito medo em nós
cresce)

"Ele foi odiando
a mansidão do pai
e com ódio na partida
o retorno virá"

(parou, então, de martelar)

"É preciso odiar muito
o ódio é uma lima
o ódio é a bigorna
que afia o amor
e o faz perfeito"

21 de julho de 2018

Eu queria que meu corpo fosse a planície
onde os relâmpagos do céu viessem
violentos se aninhar
mas como eu poderia suportá-los?

Minha vontade é maior
do que meu corpo
que é frágil.

Minha vontade, no entanto, também é frágil
diante do fogo e do som
que os relâmpagos trazem à planície
e menor, ainda menor, do que a vontade
que vem do céu e queima mesmo o capim
verde ou seco.

O que vale a minha vontade, então?

Onde estava minha vontade
quando houve a gestação das nuvens
e um sorriso engendrou nas águas primeiras
a primícia das chuvas, o orvalho novo
e o amor absoluto?

Onde estava minha vontade
quando a engenharia das estrelas
fruto desta outra maior vontade
deu sua luz à mais antiga escuridão
e declarou o fim da névoa solitária
em torno dos seres?

Eu queria que meu corpo fosse a carne
do animal abandonado pois ferido
e que as feras enterrassem seus dentes
na minha nuca perturbada
e que minha morte alimentasse o couro
de algum ser mais nobre do que eu.

Eu queria que algum juízo furioso rompesse
os músculos dos meus olhos, da minha boca
do meu coração exausto
pondo a sua força de ente mais forte
sobre a minha pequenez
vencendo-me.

Mas de que vale a minha vontade?
Quem sou eu, dentro da eternidade?

28 de junho de 2018

Carta de amor para o suicida

Sua tristeza, seu rosto, a falta de dinheiro, eu não sei mais quem eu sou. Eu amava o fato de você existir no mundo, mesmo que não viesse me visitar, eu amava que o vento acolhesse feito berço seu hálito no espaço e não o fizesse disperso como o tempo fez. O mangue ainda escorre sob os prédios a serem demolidos, infiltram mofo no cimento um sol loteado e verde. O frio. Mas eu amo ainda, independente da sua morte, a sua vida. Não: haverá o fogo e haverá a água e ser amado será um calor imenso, mas ainda não. Uma torre se ergue imensa dentro de mim, uma torre amadurece em mim a distância murada das nuvens ao sopé frio dela mesma. Não morrerei para compensar na vida o amor que você me negou.

6 de junho de 2018

Água

Sejamos benevolentes
como benevolente é a água
para os campos amenos
que lhe aguardavam

mesmo que inundemos
os campos escandalizados
que não esperavam
a tempestade que formos.

Porque a quem pode amar
e a quem não pode amar
deve ser dado amor

porém somente aos primeiros
as lágrimas que causarmos
serão de alegria.

29 de maio de 2018

O Templo

O trabalho que soergueu o templo
pondo sobre nossos ombros largos
o beijo celeste de telúrico emprego
em vão sobre os dedos rindo calos
derramou do altar nossos pássaros
os vincos azuis de marmóreo beijo
às mãos templárias o furto bárbaro.

Que furtem ainda mais ouro!
Que rasguem nossa flâmula!
Nunca farão a Luz ser fosca
nem poderão rasgar o Fogo.

27 de maio de 2018

Jesus

Seu nome é Sol, seu nome é Água, seu nome é Pássaro
e no seu nome está tudo quanto é mais simples e puro

No entanto Deus de saber tudo soube
que precisaríamos distinguir as coisas
pelo nome e o chamou assim entre nós
para que não o confundíssemos
com o Sereno, com o Vento
com a Estrada, com o Fogo

Para nosso júbilo o Senhor dos Exércitos
mostrando sua face de Príncipe da Paz

19 de maio de 2018

Reclamação no banquete dos fofoqueiros

Que se desbrave os campos do escárnio
Acidez e orgulho que se rumine amargo
Das pastagens do horror que se adentre
Heroico na antecâmara à morte o ventre
Que se cante uma nova epopeia a tempo
De enaltecer forte uma renovação dentro
Que se faça a alegria de muitos de todos!

Dirão contra. Falarão mal. Vocês apontando
independente do agires. Serão os dedos (ou
serão as mãos?) serão os dedos dos juízes?

18 de maio de 2018

Véspera de cerco

A menos que a montanha defronte
à ala destra do nosso forte nos olhe
e de abaixar seus olhos à nossa face
veja o medo tido à trombeta inimiga

pouco restará de nós, após a vigília
nada restará de nós, após a investida.

A menos que o sol vitorioso acima
encare o exército que se aproxima
e condoído lance fogo pelos dedos
e desconjunte a instalação do cerco

morreremos. Mas
se dentro restar o bom ânimo do Puro
de se ser vencido para vencer o mundo
dentro haverá paz.

13 de maio de 2018

Senda

Os porcos não configuraram um lar
Quando entre eles habitei queda e exílio
Mesmo que um estômago estufado eu tivesse
Mesmo jazendo embriagado e seguro
Mesmo que de segurança caiassem a fala
Me chamando irmão não sendo

Os leões configuraram um lar
Quando neles medrei amor e destino
Mesmo que desraigado errasse alcateias
Mesmo que tempestuosos me rosnassem
De luz imerecida rungindo nenhum chamado
Não chamando irmãos mas senda

10 de maio de 2018

Meus poemas têm uma serenidade
que não tenho ao escrevê-los, um lobo
ofegando dentro à véspera do ataque
mas fora silente prevendo o posterior
fim da fome.

5 de maio de 2018

As paredes rendas de intrincados visgos
que fizeram deste jardim um labirinto
cresceram sozinhas. Quem saber pode
o que vicejava em nós enquanto isso?
Não perceber o ponto entre estar jovem
e de repente: envelhecido. No centro
morno da mão jardínea a fonte, nela
em nós, jorrando amor, ódio, amor
e outros vinhos.

1 de maio de 2018

Raiva de criança

Têmporas rangendo uma ofensa. Dura pouco, pois logo o sorrisinho perdoante e após lágrimas. Dura a vida toda, pois todas as idades vivem no menino, nem que só lembrando as circunstâncias do mangueiral. Mas: todas as raivonas posteriores dentro dessa raivinha.

28 de abril de 2018

eremita

ir vivendo com muitas gentes
olhando fundo no oco das faces
fragmentou musculares ossos
até os caroços da paciência

onde o aonde do deserto
que fale o não ouvir?

23 de abril de 2018

Em 2050

a repetição do fracasso
essa circuncisão pagã
marcou minha geração
no aço do nosso amanhã

tivemos ossos de traça
em musculatura leonina
olhos nublados de nada
na caça por ricos dias

fracassamos e logo após
a última selfie nós
então morremos

engendramos mil venenos
suicídios filmados a tiros
porque morte maior seria
não sermos vistos

22 de abril de 2018

Melancia

De observar os dedos que pressionam
a força na couraça verde da melancia
aprender porque a secura dos calos deles
não desfaz o viço no rubor interno nela
e ter
armadura verde murada
fora
e ser
fértil latejante hidratado
dentro.

18 de abril de 2018

Pomar

para Michele Marcial

Sóis já vi muitos, mas teu coração?
Inédito mesmo se sob a atenção de quem semeia.
Céus já vi quantos me alegraram, e águas
e frutos de sorvê-los calejei minha ternura
mas teu beijo? Tenho quase certeza que teu beijo
era em si um universo de relíquias luzes
desde as eras em que todos nós
habitávamos o mesmo colo de nuvens.
E tua poesia? E teu subir árvores? E teu acordar
todas os dias para engendrar a manhã na manhã?
Eles, teus olhos acordando, me contaram ontem
que tigres mansos circulam o pomar
do nosso amor. Castos e sábios castanhos
tigres mansos
no entorno redondo do nosso amor!
Não desacredito.

15 de abril de 2018

A mãe professora e mãe

para Marisa do Carmo Marcial, na ocasião de seu aniversário

Semente semeada em semente
a mãe professora e mãe doada
para si mesma como nutriente
para a prole similar terra exata.
Pois a semente em si semeada
é orando contínuo que colore
o ar nas ensolaradas mil salas
do solo alicerçado em árvores

– e é esculpindo ser mãe na madeira
que lapida ser professora no mármore.

10 de abril de 2018

Aprendiz

Aprendi que, embora as fêmeas elogiem o mar, do mar não se bebe, no mar não se banha, no mar não se beija. Aprendi que o mal é mau e o bem é bom, mesmo que a ânsia dos arrogantes relativize o caminho e Gomorra se torne a capital do império. Aprendi que ser generoso tem que partir de um porque sim, pois aquele que espera da generosidade uma benesse deve saber que no rosto do generoso se acumulam os escarros da comunidade. Aprendi que a arte é o galho mais altivo da árvore seivosa de conhecer a si e o que nega, nela, a beleza, orbita o próprio umbigo e só. Aprendi que o amor é. Aprendi que o vento sendo tanto pode engrossar mesmo sem chuva a água boa do rio. Aprendi o horror da companhia sobretudo em detrimento ao prazer da solidão.

2 de abril de 2018

Casamento

"A mulher não tem poder sobre o seu próprio corpo, mas tem-no o marido; e também da mesma maneira o marido não tem poder sobre o seu próprio corpo, mas tem-no a mulher." - 1 Coríntios 7:4

As borboletas, duas, perseguiam-se
em cruz. Em cruz, duas, as borboletas
se amavam. Enquanto os ventos
nos ramos desmoldavam as ilhas
de luz sob o sol e sobre o gramado.

Com a nuca em meu peito ela lia
o livro que eu mesmo, também, ia
lendo. Nossos olhos perseguiam-se
às páginas lidas, sem correr, na brisa
que enovelava seus cachos e o tempo.

Havia ali um amor simples e ouro
no enredo, e havia o nosso, moço
mas já grande de violento; e nessa
da tarde os dois, em cruz, íamos
tirando arestas da história, dentro.

31 de março de 2018

Ressurreição

O breu em nós não compreendia
a vinda da luz pela voz do Verbo
nem compreendíamos o deserto
erigido pelo Leão que ruge o dia
tal qual o negror em nós não via
o véu que se rasga no furor certo
- nós não tínhamos olhos quietos
o suficiente para ver Quem rugia!

Então houve o retorno que recria.
Então compreendemos nosso elo

da cruz central ao ver o ressurecto
no trinitário sorriso do terceiro dia.

29 de março de 2018

Bodas de ouro

Quando o nosso primogênito morreu
mal tive tempo de me atentar na dor.
Havia um êxodo no teu olhar áureo
no teu olhar de lar um exílio cursou.
Nas chamas sem movimento idólatra
da tristeza o fogo forte fazia réquiem.
Tuas ruínas exigiam a minha força e
ali, embora igual ruína, eu não chorei.

Quando o câncer me tomou a carne
mal tive tempo de me atentar na dor.
Havia no teu cuidado o que cuidasse
em mim a dor que não te abandonou.
Como quem alisa o ferimento alheio
e de cuidar o outro a si unge coragem
tua força ungiu a ruína no meu seio e
ali, embora sem esta força, não chorei.

50 anos. Mais dias sendo com você
do que sendo sozinho o que eu sou.
Não erigido nos tempos de prazer.
Um amor fundado nos dias de dor.

21 de março de 2018

Fábula

é preciso conviver
com o mel
e com o ferrão

(ouviu-se
sem que ninguém
dissesse)
 
pois o outono começou
 
(mas o sol no lodo
verde tigre amando
o alaranjado marrom
disse)
 
ainda não

20 de março de 2018

O outro malfeitor

"Respondendo, porém, o outro, repreendia-o, dizendo: Tu nem ainda temes a Deus, estando na mesma condenação? E nós, na verdade, com justiça, porque recebemos o que os nossos feitos mereciam; mas este nenhum mal fez. E disse a Jesus: Senhor, lembra-te de mim, quando entrares no teu reino." - Lucas 23:40-42

Não porque o sangue que despejei criou
uma nova pureza: de tal limpeza
só um sangue é capaz. Não porque
em um dia de paz sob céu ainda pequeno
menino corri, desconhecendo ali o epíteto
luzidio que teu olhar traz. Lembra de mim,
Jesus, quando retornar ao teu reino
após estes danos que não mais temo
lembra de mim apenas porque o amo
oh sol rasgando o pano do eclipse denso
porque eu o amo mas não o mereço.

17 de março de 2018

Talvez melhor habitar a guerra
com seus crepúsculos cruéis
cravejados de heroicas odes
do que este século perverso
ornado por latrocínios
que também pode
me enlouquecer

Talvez melhor ter
em outra trincheira
a face opaca dos inimigos
do que habitar entre eles
e não distinguir aliados

Ao menos tenho a poesia
(nela porventura habito)
e quem não tem nem isso?

Perfil

Prata límpida magoada de brejo é
o reflexo lunar no lago e nos olhos
o furor de dois touros (lago e olhar)
o furor adolescente do muito sofrer
crescendo como costelas no dorso
ao norte

Ela vem e lapida uma febre
de castelos escurecidos pelas guerras
ela vem e morde as libélulas restantes
na casa incinera a música no ar ela
(a pobreza) com malícia leonina os
calçados usados sob as barbas do dia

Eu sou um poeta pobre muito pobre
e mais do que de vossos aplausos
preciso pagar o aluguel pois a voz
extravagante que lhes trago só pede
que me paguem algo pelo itinerário
que vos descrevo

Me deem
algum dinheiro

10 de março de 2018

Relatório do protetor

O poeta passou o dia com sua musa. Riu, comeu, dormiu bem. Mas o poeta estava preocupado. Comeram goiaba de um pé, pé de goiaba branca, depois de outro pé, de outra cor, comeram goiaba. Hoje foi um dos dias mais felizes da até aqui curta vida do poeta. Ele, em muitos relances, sonhou com o colo de Você como algo muito assim o dia de hoje. Mas o poeta estava preocupado. "Em alguns meses, em alguns meses", ele pensou continuamente. E tentou não lembrar do despejo, do não poder pagar o aluguel. Fez sopa, a musa trouxe bolo. Enquanto a chuva os rodeava, o poeta jogava vídeo-game com a musa. Jogaram vôlei e basquete, após. Preocupadíssimo. "Os lírios do campo", ele buscava se dizer, e fracassava, e Lhe atribuía a covardia dele, e ansiava paz. A musa, porém, o envolvia a cada tremer de pálpebras, e o beijava, delicada. Um templo. Acaso foi o SENHOR quem a enviou também? 

9 de março de 2018

Para o deserto da multidão

Ainda
que eu falasse a língua dos homens
falasse a língua dos anjos e o amor
em volteios nascesse no meu hálito
como circulando um templo vocês
nada ouviriam

Ainda
minha língua fosse de Adonai o fogo
renovante no núcleo dos relâmpagos
som feroz que mesmo assim pousasse
leve nas aves uma piedade pura vocês
nada ouviriam

Ainda mais não tendo nada disso
ainda mais sendo isto o que sou

4 de março de 2018

Cordilheiral

Quando um amigo chora
quero fazer nos meus ombros
o acréscimo
da extensão nas cordilheiras

(para que a tempestade nele
repouse com conforto tamanho
e se ajuste ao pesar)

Quando um amigo chora
quero fazer neste meu peito
um adendo
a outro coração que doa

(para que a tempestade nele
confunda as vazantes do coração
entre doação dor e lamaçal)

Quando um amigo chora
quero a morte do tempo
para que ele chore chore chore
e não pense na hora mas

eu dou apenas a ele
o silêncio que me foi dado
o silêncio atento e calmo
(e oro para que ela unguente a tristeza
sagrada do amigo
em améns)
Um dia nós seremos os antigos
- os mortos sob o piso há séculos -
e será no percorrer dos nossos anos
que os vivos buscarão algum sentido.

No traço deixado por nossos remos
buscarão rumos, sem encontrar
leste para suas velas, tesouros,
só avistando este mar e dizendo
"eram tolos", com os lábios secos,
"tolos como somos e como seremos".

Nos campos que habitávamos
pensarão que o broto se fez tronco
e que, após morto, alimentou frutos
pois de si fez nutrir bom adubo.
Mas também nos campos nada haverá
e os vivos dirão "eram tolos"
com fome mas agora serenos
- sábios pelo nosso mau exemplo?

Tomara que na escassez futura
eles plantem e se façam menos tolos
do que somos, do que seremos.

15 de fevereiro de 2018

Canção de Inílio

Nossa terra tem grandes sonhos
à sombra da fúria do sol.
Os homens que em brasileiro sonham
não sonham como os outros, a sós.
Nossa vida tem mais dança
e também tem mais ladrões.
Nosso xadrez tem mais rainhas
mas também tem mais peões.
Quando cismamos bem sozinhos
cismamos a mesma cisma
enquanto o caminho que trilham
os nossos sonhos são vizinhos.
Se depreciamos é por amá-la
esta nossa terra em pó
restando-nos à sombra da fúria
não sonharmos sonhos a sós.
Não permita, Deus, se apague
esse nosso sol sonho em comum!
O que em brasileiro dizemos
e que não pode em outros termos
ser dito por qualquer um.

4 de fevereiro de 2018

esta pouca memória
é uma grande fortuna
dessalga o rancor
dos mares
retém dos males
a espuma

esta pouco memória
medida em mãos hábeis
não compõe a má resposta
porque não se lembra
da pergunta mas antes
compõe o sol
que enxuga as bocas
que me cuspam

que venha um tempo
inconsútil e teso
e minha carne roa

até lá já terei
uma mente pura
de pedra escavada
pela contínua chuva
desta pouca memória
reescultora
de velhas histórias

grande fortuna

31 de janeiro de 2018

Os estados da bananeira e a garoa

Antes

As extremidades verdes contra o sol são lábios
frescos ou membranas ou pálpebras translúcidas
elucidadas em amarelo. O que há com minha vida
que não é tão harmoniosa? O que houve de poda
em você também houve em mim, pelos machados
e por tempestades, bananeira, então por que
essa lacuna de formas entre nosso olhar?
Vem vindo um vento novo; vejo as longas folhas
quase asas asiáticas contra o avanço platina
da nuvem orgulhosa que vem pela tua sede.
Quem como tu mantém a solar índole
mesmo com tal avanço de sombras?

O fruto das nuvens ama o fruto da bananeira
como meu coração, fruto de mim, ama
o que na mulher amada encontro par
coração dela, fruto dela.

Durante

Um tamborilar chiando chaleiras
bem de manso.

Depois

Levei o bebê aos teus pés, pé de bananas.
Desfiando assim teus lábios respinguei
a memória da chuva em você sobre nós.
O bebê riu.

26 de janeiro de 2018

Às portas da despedida

Um dia, meu amor, as estrelas penetrarão os campos
e o céu fará desabar o sêmen há muito represado nas nuvens
sobre os gramados em que deitamos
e sobre os gramados em que ainda não deitamos
tocará os lábios úmidos da terra o leite
preparado pelas muitas gerações de poesia
que nos antecedeu.

O olhar feroz do mundo

para nós será nada.

Amor: um dia o espírito de Deus
voltará a se mover muito lentamente sobre as águas
muito, muito lentamente
mas bem antes disso
voltaremos a nos encontrar
e nos beijaremos entre lágrimas de alegria
novamente
não se preocupe.

23 de janeiro de 2018

O profeta na noite

Chove.

Eis que a morte espalha medo e mágoa até nas feras
enrolando seus cabelos na água desabada em cólera.

Olhem:

dentro dela alguém cavalga rasgando véus soturnos
sob a lâmina do cajado puro que é sua flâmula e luz.

Troveja.

As montanhas se destacam desse negror tempestuoso
quando o raio feito osso rasga as entranhas da noite.

Vejam:

as torres longínquas tremeram ao sinal adormecido do
golem cujo destino é guardar o tempo no fundo do mal.

Venta.

Quem é esse que voa sem ter asas trazendo iluminadas
brasas na boca para que purifiquem sua língua seca?

Vejam:

o cavalo sob o ancião rasga a noite para fazê-la dia.

Troveja.

O profeta em sua montaria mescla o trovão à sua voz.

22 de janeiro de 2018

A angústia abocanha o nosso peito
porque há quem tenha o que não temos.

É a cidade.

Sempre prestes ao abismo
ou prestes ao maior fogo
sempre prestes à civilidade
ou à maior barbárie.

A culpa é dela.

Passa um carro. Passa um sorriso.
Passa um sonho ruínas de tão antigo.
Se não os temos, nada somos.
A cidade tem os cabelos
fatigados de fuligem
e um coração que não parece
ser, um coração que zomba.
A culpa é dela.

16 de janeiro de 2018

Passarinho

Azul um passarinho me disse
cansadinho e meio triste
"ah se eu pudesse não ter pouso!
ah se no voo houvesse um ninho
sem galho, orvalho de colocar
minhas asas dormindo no ar!"

Azul eu lhe respondi
também triste e cansadinho
"ah meu passarinho! você
não tem do que reclamar!
quem me dera um teto mínimo
mesmo no galho já caindo
mesmo rente ao vendaval!
tenho que pagar aluguel
alma entregue num papel
e não tenho como pagar!"

Azul a gente viu a tarde
ficar azul mais tarde
ele de dó então cantou
para que eu após chorasse
e eu chorei azul de dor
como quem choraria
mesmo se ele não cantasse

12 de janeiro de 2018

Lavrador

Você vai morrer. E os reis vão morrer.
Morrerão as leis, morrerá quem já morreu.
Os miseráveis também, e entre eles
eu. Porém, de nós, quem já é íntimo
do chão? Quem lavra com suor
a terra promissora de pão?
Todo homem sem calos
toda mulher sem dedos ásperos
está mais distante desse pó que é pia
batismal onde me banho e purifico
longe desse resquício marceneiro
crístico e longe desse brilho.
Das quinas, então, desses calos santos
sedimentos eu te canto: quando
for a minha hora
ao menos eu mesmo
terei cavado minha própria cova.

Sua Majestade o Bebê

"Doença, morte, renúncia à fruição, restrição da própria vontade não devem vigorar para a criança, tanto as leis da natureza como as da sociedade serão revogadas para ela, que novamente será centro e âmago da Criação. His Majesty the Baby, como um dia pensamos de nós mesmos." - Freud, em Introdução ao Narcisismo

Pequeno construto de grandes expectativas
condensação de adultos fracassos que expande
a ilusão. Será rei? Será um deslumbre ínsito?
Será rainha? Deflorará nativas? Vosso choro
vem do recinto mítico que nos é passado.
Vosso riso nos faz comer esperança
como antes comíamos pão. Heróis que não
nos tornamos, nele sublinhamos
como antes em nós
por nossos pais seríamos grandes.
Pequeno projeto, vos construímos, pequeno
e fino
primeiro alicerce para seu próprio suicídio.

8 de janeiro de 2018

Mamom

"Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom." - Mateus 6:24

Quando eu grito, vossas famílias ao longe
se dissolvem ao meu encontro.
Enquanto eu falo, todos os demais
se calam. Quem sou? Quem
sou? Eu sou a razão do fogo em vosso olhar
sou verde vosso verdadeiro amor.
Os homens rastejam atrás da paz?
Pensam descomunais no conforto do amor?
Atrás de mim, é que rastejam.
É só em mim, que vocês pensam.
Será por que brilho? Por que douro?
Por que sois ásperos insetos sem luz
com a face a bater contra a lâmpada?
Quando eu sussurro, vosso ouvidos dilatam
vórtices ao redor para me ouvir melhor.
Quando eu cuspo, lançam-se
buscando apanhar no ar
minha seiva com a língua.
Quem sou? Imperador de todas
as almas, eu sou, eis
meu século! Quem sou? Não
reconhecem a face de vosso senhor?

5 de janeiro de 2018

A Saudade

para Michele Marcial

Um sol que não esquenta cresce ao longo das serras
e é a planície do coração sensível que se encolhe
é uma perversidade ante a gélida distância
uma mudez que avança é a falta
diante do dia que já não fogueia
são armaduras reluzindo cavaleiros
que há muito não as habitam em glória
são frutos prometendo gomos em sumo
podres na ausência de sementes férteis
o mal sal sobre a terra do lar se estende
onde ondas de frio sob órbitas longínquas
mineram o vazio que se enche é a falta
de quem aqui está sem estar
é o canto gregoriano é a lua minguando
de quem aqui está sem estar
porém
então
ela
diz
eu te amo
ah
relâmpagos de sonho
poderei assim sobreviver ao sol herético!