30 de dezembro de 2018

Ano-novo no asilo

"No Senhor confio; como dizeis à minha alma: Fugi para a vossa montanha como pássaro?" - Salmos 11:1

Sabe, minha filha, meu amor
não olhe tanto para o relógio
olhe para mim. Ouça: eu já fui
o que caçava pássaros, assim
como também já fui o pássaro
que viu a mão do mundo
fazer-se laço sobre as asas
daquele que tão azul voava
crendo em aplausos
mas saiba, minha filha
que hoje quero recolher
entre minhas mãos
fracas de tempo
e brancas
de alegria
como este relógio
a face relâmpagos
de todos a quem ofendi
não como se eu recolhesse
um pássaro em pleno voo
mas como a um filhote caído
cujo ninho o vento rasgou.

Ouça: é silencioso o perdão
daquele que pra dentro canta.

Aquele que pra dentro canta
não como se fosse um pássaro
mas como sendo
uma montanha.

22 de dezembro de 2018

Fruta Boca

para Michele Marcial

Fácil te reconheci como amada
porque todos os nossos beijos
são o reconhecimento
dos frutos que eu criança
roubava:

Na saliva leitosa da manga
abraçando com meus lábios
os lábios pequenos
das pitangas
lá de casa

Na língua seivosa de amora
que naquele tempo
fazia do vermelho um selo
como seu batom
que hoje me marca

Na memória que tenho
do sumo puro
em sua boca
de fruto
sem casca

20 de dezembro de 2018

Allegro

Em Vivaldi este estio
do roxo das rosas
no rosa dos rios

Em Vivaldi estes reinos
de belicosos átrios
em pátios amarelos

Em Vivaldi esta flâmula
do vermelho das águas
no azul das chamas

16 de dezembro de 2018

Miss Universo

Algumas pessoas são belas se você olha pra elas por, digamos, 10 minutos. O contorno do nariz passa a fazer sentido com a linha superior da boca, como ilhas se tornando harmônicas quando nomeadas de arquipélago. Substâncias barrocas. Amadas substâncias barrocas!

Outras pessoas, logo quando recém vistas, revelam-se belas, isto é, abrem-se. Luz, imagina-se, luz. Mas ocorre que, se você olha para elas por, digamos, 10 dias, a beleza se desfaz onde não haja amor, gotejando, pois, oh neve!, para ti o Senhor reservou o verão.

Estas pessoas, todas as pessoas, o que fazer? O alimento dos olhos é a admiração contínua, esta é a água que os lubrifica. O que fazer? Nós precisamos escolher todo ano uma nova mulher mais bela do mundo porque não duram: os olhos, a beleza, a mulher, o mundo.

Todas as pessoas, escutai: quando vocês maquiam uma face, a vossa mesmo ou outro disfarce, vocês maquiam um cadáver, morto sob o punhal da vaidade. Retirem este punhal!, porém, e na ferida estará escrita a verdade: haverá Quem contemplemos, sem tédio, por todos os anos da eternidade.

9 de dezembro de 2018

O cansaço que tenho dos corpos no mundo.

O cansaço que tenho destes volumes de pó.

Fazei chover, Senhor.

Fazei chover sobre este cansaço.

E sobre o mundo, fazei chover.

Desmantelai os tijolos que os homens ergueram para tentar cobrir Vossa face.

Limpai do coração carbônico dos homens esta vergonha erigida em templos.

Fazei chover, Senhor, sobre nós a tristeza que só o amor perfeito tem.

Limpai a pele suja daqueles que os espelhos refletem limpos.

Limpai da terra os templos erguidos, fazei tombar a pompa dos tronos.

Limpai de mim, Pai, este ódio que por eles sinto.

Fazei chover, Senhor, adormecei sob águas este calor falso.

Alimentai de água o lodo que comerá nossas obras.

O frescor nas reentrâncias do navio que será necessário.

Fazei chover, Senhor, mansamente limpai.

O cansaço que tenho de todas as coisas que não são Você.

Fazei chover, Senhor.

4 de dezembro de 2018

Instruções para dizer "amados"

para Michele e Deus

Dizer o "a":
este primeiro abrir a boca
deve ser
um dizer e ver ser
toda a boca fazer-se sopro
como se da garganta
sem fôlego
os pulmões clamassem
"oh coração
me dê mais espaço"
emulando em si
a primeira vertigem
ao ver a nudez do outro
ou ao recolher chuva
na polpa da língua
fazer-se
boquiaberto e orar

Dizer o "ma":
unir os lábios em unção
rememorando a união das bocas
a cadência mansa da proa
nas águas intermediárias
necessárias
desta palavra amada
unir os lábios em unção
exige pequena vaidade
exige grande coração

Dizer o "dos":
doação doação oh amor
doação é teu último nome
teu nome de casada
é doação oh vida
dizer contra os dentes
oh língua
o sobrenome desta palavra
e circular sibilante o fim
da plural doação
para fazer
nós três
distâncias mínimas
assim como é necessário
haver amor
para haver amados

2 de dezembro de 2018

Hamlet feliz

Escrever, não escrever, eis onde estão
meus olhos, felizes, sob as marquises
do anseio de criar - mas como escrever
sem aflição, sem chorar outra angústia
que não seja a minha e a sua, como, se
nesta caneta suja a tristeza fez seu lar?

Vou inventar que morri
só pra poder ressuscitar.