26 de novembro de 2017

Self-made man

Eu quis ser amado, sobretudo amado, coisa
que trabalhando nos arrozais não era possível.
Eu via as belas camponesas entregues
aos outros, vencido, transtornado, grande
minha fome de vínculos ternos íntegros
meu corpo sangrando na condição ímpar
de independência compulsória
solitária. Eu quis ser amado.
E vendo o preço dos amores
eu quis comprá-lo. Os carros, os filmes
os cavalos: eu quis comprá-los.
E o ouro foi o mensageiro alado
e pálido a preencher o delgado desprezo.
Eu quis ser amado. E enfim sou.
O ouro fez com que os corações
voltassem a face para o meu beijo.
Eu sou amado. Hoje, sim, eu sou amado.
Olhai os cromáveis aros do meu arado!
Sou amado. O corpo agora insolitário.
Eu sou amado.

23 de novembro de 2017

Apontamento no banquete de aniversário

Os campos não aprenderam a reter mais verde e os rios ainda fluem com idêntica maestria de há 23 anos. O sol se mantém indiferente à nossa condição ínfima e mortal (indiferente à mortalidade dele próprio) e nada aponta que as intempéries rosnem com mais ferocidade. No entanto: a diferença é que desde lá existo, tenho olhos e cheiro, tenho pele e vejo, tenho nariz e toco. O universo já existia, antes de mim, a diferença é que agora ele existe.

21 de novembro de 2017

Biblioteconomia

O céu noturno latejante de galáxias tem
sílabas imensas de luz, amor e destino
mesmo se não as vemos na tempestade
mesmo quando não cremos que estrelas
ainda existam, porque de não as ver
deixam de existir, nos interrogando o que
faz o céu sob a capa dura das nuvens?
indecifráveis poemas sonhando dilemas

E ontem, e à noite, chovia: em nosso quarto
e além dele, nos campos macios dos índices
tombando os frutos sumarentos dos sumários 
a pele era a página com que nos compunhamos
longe das fronteiras marciais letras de arame
longe dos altos oceânicos letras de atol
longe de juízes rancorosos letras perenes
perto inclusive dentro apenas letras de amor

17 de novembro de 2017

O velho devedor

Vi vultos vindo na lava
do oitavo dia. Desvario? A vida
ex-verde das dádivas velhas.

O Monstro Dípode

para Davi Luiz Capelari, na ocasião de seu aniversário

Quem vê
os músculos retesados até seu auge
de aço, trabalho, combate e cansaço

pergunta se pode ser
de um homem bom
ter nervos solares

"Pode a robustez do monstro dípode
aparar macio as flores no pasto?"

Pode

É o forte caso do
coração mole envolto
em um rijo campeão vasto

7 de novembro de 2017

O irmão aconselhador

A constituição de um homem é o seu caminho
cheio de azuis que seja ou cheio de espinhos

Como homens grandes não cabem em façanhas
os homens menores cabem em qualquer ninho

Como um dia fui às montanhas
irás para o mar - e também sozinho

Reencontro

a longa cólera enfim resoluta, o gordo
fio enfim desembaraçado: o mesmo
olharzinho de primavera
o mesmo bocejo doce
cor de canela

Ensinamento no banquete dos jovens pais

Se o filho pródigo não tivesse levado sua parte em ouro, ele nunca retornaria à casa paternal. Em primeiro lugar porque se desde o início ele nada tivesse a perder, ele nada teria para recuperar. Em segundo lugar porque o consentimento da família transforma a transgressão em exercício de estilo, em fruto espontâneo da adolescência. Em terceiro lugar porque ele foi odiando a mansidão do pai, seu consentimento, e a despedida banhada em ódio já planeja o retorno. Nas três razões, o mesmo mote: é o ódio quem afia o amor e o torna perfeito.

5 de novembro de 2017

Penélope

Sim, eu já sabia que seria pouco o teu ficar. Mas
ao cultivar seu corpo de perfumes em mim houve
o delírio: construir uma casa de estadia milenar.
Sim, eu já sabia que o florescido no verão morre
vindo o outono, e que não em vão sem dolo
as árvores se mantém invictas no lar.
Porém: o que fazer com os cômodos
que cultivei, as amplas portas feitas
para um par, esse leito há décadas
com cheiro de há pouco?

4 de novembro de 2017

A depressão da musa

Entre os dedos da tarde licorosa
se fez triste vossa carne perfeita.
E seu olhar, outrora rósea tocha,
te fez entre tristes a bela eleita.
Que más nuvens, em nívea tela,
as olheiras em temporal desfeito!
Que melancolia e quanta guerra
vindo vil do auto-desrespeito!
Recuei, na ocasião, de medrar
em te ver desvanecer. Hoje no ar
me faço âncora aos vossos pés
procurando assim firme amar
não o que foste, mas o que és.

3 de novembro de 2017

Para escolher uma tatuagem

Dentro do símbolo
esse fogo vândalo
e dentro no sangue
marcas de pranto

Dentro do símbolo
um vínculo santo
e espíritos lívidos
pálidos enquanto

Dentro do símbolo
um norte estranho
às vezes sísmico
mas não garanto

2 de novembro de 2017

Quase 23

Nestes últimos anos (os únicos)
nada aponta na voz dos ventos
que a beleza tenha morrido

Por que o olhar cansado
então? Nada há que diga
sobre a vida ter esgarçado
seus panos, nem que haja
aumento ou desengano
nas presas do destino

O sol continua a ser
a bolha que estoura
com um dia de idade

Por que então
em minha agilidade
a ferrugem erradia
mesmo com mais
de mil?