31 de janeiro de 2018

Os estados da bananeira e a garoa

Antes

As extremidades verdes contra o sol são lábios
frescos ou membranas ou pálpebras translúcidas
elucidadas em amarelo. O que há com minha vida
que não é tão harmoniosa? O que houve de poda
em você também houve em mim, pelos machados
e por tempestades, bananeira, então por que
essa lacuna de formas entre nosso olhar?
Vem vindo um vento novo; vejo as longas folhas
quase asas asiáticas contra o avanço platina
da nuvem orgulhosa que vem pela tua sede.
Quem como tu mantém a solar índole
mesmo com tal avanço de sombras?

O fruto das nuvens ama o fruto da bananeira
como meu coração, fruto de mim, ama
o que na mulher amada encontro par
coração dela, fruto dela.

Durante

Um tamborilar chiando chaleiras
bem de manso.

Depois

Levei o bebê aos teus pés, pé de bananas.
Desfiando assim teus lábios respinguei
a memória da chuva em você sobre nós.
O bebê riu.

26 de janeiro de 2018

Às portas da despedida

Um dia, meu amor, as estrelas penetrarão os campos
e o céu fará desabar o sêmen há muito represado nas nuvens
sobre os gramados em que deitamos
e sobre os gramados em que ainda não deitamos
tocará os lábios úmidos da terra o leite
preparado pelas muitas gerações de poesia
que nos antecedeu.

O olhar feroz do mundo

para nós será nada.

Amor: um dia o espírito de Deus
voltará a se mover muito lentamente sobre as águas
muito, muito lentamente
mas bem antes disso
voltaremos a nos encontrar
e nos beijaremos entre lágrimas de alegria
novamente
não se preocupe.

23 de janeiro de 2018

O profeta na noite

Chove.

Eis que a morte espalha medo e mágoa até nas feras
enrolando seus cabelos na água desabada em cólera.

Olhem:

dentro dela alguém cavalga rasgando véus soturnos
sob a lâmina do cajado puro que é sua flâmula e luz.

Troveja.

As montanhas se destacam desse negror tempestuoso
quando o raio feito osso rasga as entranhas da noite.

Vejam:

as torres longínquas tremeram ao sinal adormecido do
golem cujo destino é guardar o tempo no fundo do mal.

Venta.

Quem é esse que voa sem ter asas trazendo iluminadas
brasas na boca para que purifiquem sua língua seca?

Vejam:

o cavalo sob o ancião rasga a noite para fazê-la dia.

Troveja.

O profeta em sua montaria mescla o trovão à sua voz.

22 de janeiro de 2018

A angústia abocanha o nosso peito
porque há quem tenha o que não temos.

É a cidade.

Sempre prestes ao abismo
ou prestes ao maior fogo
sempre prestes à civilidade
ou à maior barbárie.

A culpa é dela.

Passa um carro. Passa um sorriso.
Passa um sonho ruínas de tão antigo.
Se não os temos, nada somos.
A cidade tem os cabelos
fatigados de fuligem
e um coração que não parece
ser, um coração que zomba.
A culpa é dela.

16 de janeiro de 2018

Passarinho

Azul um passarinho me disse
cansadinho e meio triste
"ah se eu pudesse não ter pouso!
ah se no voo houvesse um ninho
sem galho, orvalho de colocar
minhas asas dormindo no ar!"

Azul eu lhe respondi
também triste e cansadinho
"ah meu passarinho! você
não tem do que reclamar!
quem me dera um teto mínimo
mesmo no galho já caindo
mesmo rente ao vendaval!
tenho que pagar aluguel
alma entregue num papel
e não tenho como pagar!"

Azul a gente viu a tarde
ficar azul mais tarde
ele de dó então cantou
para que eu após chorasse
e eu chorei azul de dor
como quem choraria
mesmo se ele não cantasse

12 de janeiro de 2018

Lavrador

Você vai morrer. E os reis vão morrer.
Morrerão as leis, morrerá quem já morreu.
Os miseráveis também, e entre eles
eu. Porém, de nós, quem já é íntimo
do chão? Quem lavra com suor
a terra promissora de pão?
Todo homem sem calos
toda mulher sem dedos ásperos
está mais distante desse pó que é pia
batismal onde me banho e purifico
longe desse resquício marceneiro
crístico e longe desse brilho.
Das quinas, então, desses calos santos
sedimentos eu te canto: quando
for a minha hora
ao menos eu mesmo
terei cavado minha própria cova.

Sua Majestade o Bebê

"Doença, morte, renúncia à fruição, restrição da própria vontade não devem vigorar para a criança, tanto as leis da natureza como as da sociedade serão revogadas para ela, que novamente será centro e âmago da Criação. His Majesty the Baby, como um dia pensamos de nós mesmos." - Freud, em Introdução ao Narcisismo

Pequeno construto de grandes expectativas
condensação de adultos fracassos que expande
a ilusão. Será rei? Será um deslumbre ínsito?
Será rainha? Deflorará nativas? Vosso choro
vem do recinto mítico que nos é passado.
Vosso riso nos faz comer esperança
como antes comíamos pão. Heróis que não
nos tornamos, nele sublinhamos
como antes em nós
por nossos pais seríamos grandes.
Pequeno projeto, vos construímos, pequeno
e fino
primeiro alicerce para seu próprio suicídio.

8 de janeiro de 2018

Mamom

"Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom." - Mateus 6:24

Quando eu grito, vossas famílias ao longe
se dissolvem ao meu encontro.
Enquanto eu falo, todos os demais
se calam. Quem sou? Quem
sou? Eu sou a razão do fogo em vosso olhar
sou verde vosso verdadeiro amor.
Os homens rastejam atrás da paz?
Pensam descomunais no conforto do amor?
Atrás de mim, é que rastejam.
É só em mim, que vocês pensam.
Será por que brilho? Por que douro?
Por que sois ásperos insetos sem luz
com a face a bater contra a lâmpada?
Quando eu sussurro, vosso ouvidos dilatam
vórtices ao redor para me ouvir melhor.
Quando eu cuspo, lançam-se
buscando apanhar no ar
minha seiva com a língua.
Quem sou? Imperador de todas
as almas, eu sou, eis
meu século! Quem sou? Não
reconhecem a face de vosso senhor?

5 de janeiro de 2018

A Saudade

para Michele Marcial

Um sol que não esquenta cresce ao longo das serras
e é a planície do coração sensível que se encolhe
é uma perversidade ante a gélida distância
uma mudez que avança é a falta
diante do dia que já não fogueia
são armaduras reluzindo cavaleiros
que há muito não as habitam em glória
são frutos prometendo gomos em sumo
podres na ausência de sementes férteis
o mal sal sobre a terra do lar se estende
onde ondas de frio sob órbitas longínquas
mineram o vazio que se enche é a falta
de quem aqui está sem estar
é o canto gregoriano é a lua minguando
de quem aqui está sem estar
porém
então
ela
diz
eu te amo
ah
relâmpagos de sonho
poderei assim sobreviver ao sol herético!