30 de abril de 2019

Poema

O cheiro bom da terra em torno do manjericão
me faz pensar em Deus, e o cheiro das colinas
que imagino e quase não vejo. A luz aberta
no coração da manhã me faz pensar em Deus
e a luz diluindo a antiguidade do mofo, esta
luz na presente tarde faz pensar em Deus
- não faz? Na espessura do café fluindo
na memória boa de uma boca que sorri
penso em Deus - e quando vejo as nuvens
após o trabalho recém exercido
com os músculos cansados durante o suor
após a noite - e com a noite - Nele penso.
Não sendo viável entendê-lo com os dedos
eu entendo do meu jeito: no cheiro da terra
em torno do manjericão
no cheiro das colinas
que imagino
quase não vendo.

27 de abril de 2019

A sinceridade é uma coisa boa porque nela jogamos sob a mesma regra, a da realidade, enquanto que para mentir há muitos tabuleiros diferentes. O jogo segue, de qualquer modo. Vence quem conceber o xadrez mais inédito? "Eu encurralei seu rei, venci", diz o sincero de qualquer época. "Mas, no meu jogo, vence quem tem o rei derrotado", responde o homem do presente século.

21 de abril de 2019

Um outro domingo

Essa erva crescendo nas vigas sulcadas
do ódio amargo destes tempos inglórios
- e esta ferrugem nessa faca
a romper as fibras do córdis.

Meu Pai, como amar meu inimigo?

Como amar esse imenso domingo
que devora o descanso de outrora?

As vigas apodrecidas são meu corpo
a suster meu amor frágil de pecador.
E a faca é esta vida, contida no bojo
do antigo nojo que corta o que sou.

Mensageiro, meu irmão: pegue
a tua trombeta e anuncie a ode
que meus inimigos aguardam...
Que eles rodeiem as muralhas
e que riam, porque me rendo.

Pai, oh prece de incenso,
como amar meu inimigo?
Entregando-me sozinho?

Não.

Entregando-me contigo
como Teu Filho
a nós Se entregou.

19 de abril de 2019

Lá e aqui

Por tédio da minha própria vaidade
deixei que meus ouvidos abarcassem
o que diziam de mim, em Valentim.

Eu queria ser como o louco que bebe
comum à toda cidade
ou o como aquele
que dá medo nas crianças
mas uma versão que escreve poemas
desses loucos
e sem dar medo nas crianças
eu queria ser o poeta louco da cidade
e que quando precisassem de alguém
para opinar sobre a simetria das folhas
verdes dentro do plano geral de Deus
viessem falar comigo
quando precisassem de alguém
pra mostrar a beleza das nuvens
responsabilizassem meus olhos
pela resposta.

Por tédio da minha própria vaidade
deixei que meus ouvidos abarcassem
o que diziam de mim, lá e aqui.

E não era
o que sou
o que viam em mim.

Por tédio da minha própria vaidade
deixei que meu coração ancorasse
essa preocupação naquele tempo.

E perguntei:
não me veem!
E respondi:
mas
o que eu mesmo
vejo?

18 de abril de 2019

Abril, meu bem

para Michele Marcial

Abril é isso: a manhã
feita meu bem. Abril:
abrem-se dos bosques
a fundação das pétalas
e para Deus cantam
sobretudo os mudos
o canto sorrindo tudo
que em abril
canta-se muito.

Abril, isso sendo:
do aniversário dela
relembra-se o mundo?

Se não o mundo
ao menos os olhos
sob meus cílios.

Se não o mundo
ao menos abril:
o orvalho da manhã
que do aroma da maçã
no olhar dela caiu.

16 de abril de 2019

A percepção ondas

"Ele fez tudo apropriado ao seu tempo. Também colocou no coração do homem o desejo profundo pela eternidade; contudo, o ser humano não consegue perceber completamente o que Deus realizou." - Eclesiastes 3:11

Se meu corpo gastar sob um rio
as searas de uma tarde, à noite
meus músculos irão ondular
como se ainda sob águas
dançassem.

Assim também é com o coração
se antes das searas de uma vida
foi mergulhado em vossa água:
vindo a noite, ondulará a luz
de sua memória eternidade.

6 de abril de 2019

Senhor, protegei os poetas
estes olhos tão sem norte
atormentados pelos sons
abrindo contínuos cortes
amolecendo nosso chão
Senhor, protegei os poetas
nossa tolice de muitos sinos
e coração de muitas portas
abrindo para labirintos hirtos
esculpidos no haver trovas
Senhor, protegei os poetas
cinge-nos brasa na garganta
rouca dessa torpe arquitetura
fazei de nossa insânia dura
alguma ode santa