23 de dezembro de 2020

Maria, talvez

Maria, com ternura, talvez tenha enrolado
algum cachinho de Jesus entre os dedos
pensando levemente espantada
como um sussurro de águas
em um jarro
enquanto o amamentava

"Eis o Senhor
nos braços
dos meus beijos!"

Com os olhos entreabertos
de amor
e o sorriso terno
satisfeito
Maria talvez sussurrasse

"eis meu Salvador
a quem alimento com o leite
que Ele mesmo criou!"

Talvez Maria
tenha cogitado
o incompreensível
nisso
a loucura de Deus
como está escrito
refazendo, fio de azeite
a linhagem de Jacó
e Davi, em frente
enquanto passava os dedos
pelas bochechas de Jesus
quase dormindo, ressonando
tranquilamente

"Dorme, Senhor meu
meu filho amado
Jesus"
talvez tenha pensado
os olhos úmidos pela graça
Maria tivesse
os olhos molhados de amor
de água, de sal, de tempo
e o coração úmido de luz

15 de dezembro de 2020

Poema de agradecimento

obrigado, Senhor, porque me deste este coração de sofrer
e amar
estes olhos de chorar e esta boca de nutrir
obrigado por me sorrir limitado
pelas margens do corpo
como um rio raso, feliz de peixes, enlameado de vida
e iluminado de águas

obrigado pelo dom do arrependimento contínuo
em pensar nas vezes em que não agi com amor
pois ao ficar envolto em burrice e aprendizado
como o soluço magoado da criança
no mar
aprendo a mágoa apaziguada
do sal 

obrigado também
porque não vislumbro o futuro dos meus passos
mas por saber que estão guardados em Você
Senhor
igualmente ficam calmos o futuro e o passado
a lâmina da angústia dissipada
em obrigados

8 de novembro de 2020

Anotações camponesas

1. Haver chuva no tempo de chuva, haver sol no tempo de sol: as mãos da bondade de Deus abertas em amarelo, verde e azul.

2. Qual deve ser a cor favorita do Senhor?

3. A borboleta é o sorriso da flor.

4. A abelha é o trabalho da flor.

5. A flor é o carinho da árvore, como que bregamente dizendo "não tenho dedos: acaricio com pétalas".

6. Que triste deve ser, vendo criação sem crer em criador, que tristíssimo deve ser colher um fruto e não sentir nascer o córrego da gratidão dentro do peito...

7.  Folhagens mexendo, dançando no vento: o vento não vejo, mas seus efeitos.

8. Nervosas formigas ocupadas com nem-elas-sabem-com-quê.

9. Quanta misericórdia de Deus em haver manga!

10. A boca seca, a língua uma lâmina, os lábios rachados: calma, criação, daqui a pouquinho chove.

27 de outubro de 2020

A conversão das nuvens

"A tua misericórdia, Senhor, está nos céus, e a tua fidelidade chega até às mais excelsas nuvens." - Salmos 36:5

Como abriste o primeiro céu, Senhor
no coração da presente tarde
para vencer com as mechas do sol
os cabelos rubros da tempestade

E como abriste a madre do vento
que dobrava o verde das pastagens
para nascer a mansidão do sopro
tranquilo em azul linguagem

Trocaste também, Senhor
o meu coração de nuvens
pelo sol da eternidade

8 de outubro de 2020

mínima prece

Senhor, meu Senhor

que sabes de quantas gotas
uma rocha precisa
pra ter um ninho
em suas esquinas

dai-me o dom de saber
consolar um amigo
sob as pedras dos dias

Senhor, ah Senhor

que sabes
quanto lágrimas
chorarei
e em seu livro
as têm escritas

dai-me o dom de saber
estar em silêncio
diante da lágrima
amiga

26 de setembro de 2020

5 de setembro de 2020

A fotografia primavera

Casei-me com uma fotógrafa campal; casei-me com uma bordadeira campal.

Com ela, quando chove, eu sorrio - porque sei que suas lentes verão o dorso do campo brilhar. Com ela, quando a seca chega, eu também sorrio - porque sei que suas agulhas copiarão o mato quarar amarelo sob o calor do sol.

Os olhos dela dizem ao pássaro para que não voe - pois será fotografado. Depois, os olhos dela dizem ao pássaro para que ele voe - pois será bordado. O pássaro, quase uma folha, obedece seus olhares - também meu coração os obedece e o coração dela aos meus.

Fotógrafa, bordadeira, campal, eu a amo. A boca, um fruto a ser descrito sobre um pano; o sorriso, as pequenas primeiras flores de uma fotografia primavera.

31 de agosto de 2020

As fibras do dia

Senhor: porque as fibras
dos meus braços eram ruínas
eu não poderia
trabalhar no teu campo.

Via os gomos do mar trigal
relembrava como naus
o seu gosto acre
nos trabalhadores
cantando distantes.

Senhor: porque a alegria
em mim desmanchava-se
fuligens e palha
eu não poderia
cantar no teu campo.

Mas recriaste em mim
com as fibras do dia

novas mãos
novo trabalho
novo campo

e nova garganta
com as fibras do dia
para novo canto.

30 de agosto de 2020

O cântaro de cânticos

para Michele

Você é bonita como um rio
fértil de peixes e luar
com sua palidez de sonho
e seu sorriso de maná.

Você é bonita como o campo
que floresce na colheita
as mãos de quem semeara
com suor a sua seiva.

Você é bonita como a casa
à qual se chega já cansado
encontrando sobre a mesa
comida quente, beijo, tato.

Você é bonita como encher
de água a palavra cântaro
e saciar-se no rio da vida
do qual Deus faz cânticos.

23 de agosto de 2020

A celeste cidadania

Eis o ponto de fundição
a têmpera no coração
dos estrangeiros:

estar sobre a terra
que se guarda para o fogo
dos últimos tempos.

A morte já não é inimiga
destes que trazem nas fibras
renovadas pelo vento
tal celeste cidadania.

22 de julho de 2020

Pregos em salvas

para o Kelson

Quando a carne do meu cérebro
rasga-se nas lâminas de um raio
e sinto o emprego dos martelos
começar em mim o seu ensaio

sinto seus dedos, sinto os pregos
rachando meu crânio dos lados.

Mas caso tal dor me ire
não permanecerei irado!

Pois sei que meu redentor vive
e sei que seu corpo foi rasgado
mesmo santo, para me ver livre
dos pregos dos meus pecados

e nele fui salvo do inferno
pelos pregos do calvário.

12 de julho de 2020

O inverso cadeado

Quando os que se amam
olham-se em olhar mútuo
fazem como se guardassem
um segredo

e fabricam dos olhos
algo com que beijam.

Mas os que se amam
quando olham-se mudos
sorriem como se abrissem
tal segredo

destrancam dos olhos
o calor que há dentro

e todos podem vê-lo.

20 de junho de 2020

Bilhete pro Pai

Senhor, eu gosto do frescor
de certos verdes que criaste
e gosto da poesia
de idêntica tranquilidade.

Senhor, eu não gosto
do barulho deste século
nem do ruminar contínuo
nas entranhas dos prédios.

Senhor, estou cansado.

Mas consolo-me no frescor
de certos azuis que criaste
e na poesia
de idêntica tranquilidade.

Obrigado!

15 de junho de 2020

A Segunda Vinda

O aroma da sede saciada
em reencontrar
quem se ama
tem o cheiro de chuva
na terra seca.

A água rejuntando
as vias exaustas
da terra
antes rachada dentro
agora eternamente
ribeiros.

25 de maio de 2020

Enquanto estivermos aqui

Irmãos,
vede: o azul estriado de nuvens
beijou a manhã e deu-nos maná.

E eis que o Senhor fez a manhã.

Irmãos,
sentis: o rubro orvalho da pele
jorra pelos cortes sob o chicote.

E eis que o Senhor fez a noite.

Meus irmãos: é necessário.
Meus irmãos: falta pouco.

8 de maio de 2020

Corona

O vento outrora das pipas
antes beijando as casas
agora desfia as fibras
de nuvens fragilizadas
- pois há um cavalo
dentro do vento
levando a morte
nas asas

e no áspero
de suas crinas
levando a coroa
quebrada

a coroa quebrada do medo
respirado
sob as máscaras.

23 de abril de 2020

Terra, terra, terra

Ó terra, terra, terra! Ouve a palavra do Senhor! - Jeremias 22:29

Nas reentrâncias dos calos de um lavrador
fica um pouco da terra que escapou do arado
e nas unhas fica o odor de vermes do roçado
semeando os dedos de quem a terra semeou.

Se assim é
e os homens que sobre a terra
hoje esculpem um riso confiante?

O que farão os grandes
quando suas carnes tremerem diante
da Ira do Senhor?

Ainda trarão nos calos
a ornada feição de escárnio
que sobre o mundo semearam?

8 de abril de 2020

Arrebatamento

Eis aqui vos digo um mistério: Na verdade, nem todos dormiremos, mas todos seremos transformados - 1 Coríntios 15:51

A quem fica deixo o ouro
que nunca tive, mas sei que existe
- deixo o brilho gordo que em riste
grudará vossos ossos sob o fogo.

A quem fica deixo guerras
que nunca fiz, mas presenciei
- deixo a velha faca de um rei
insepulto sob o trono das eras.

A quem fica deixo o pecado
que tanto e de tantos lados pequei
- mas vem comigo esse dom dado
por Deus, de me arrepender.

27 de março de 2020

Os filhos da paz, em tempos de guerra

Os filhos da paz, em tempos de guerra
são como as pálidas velas que doam
cera e pavio ao fogo; derretem-se
entregam-se
em mudos
sopros.

E como o verdor da hera
lentamente mutila
as estruturas de um muro
os filhos da paz sabem
em tempos de guerra
recolher nos vasos de si
o pouco amor
que reste no mundo

e entregam-se
mesmo poucos
por muitos.

15 de março de 2020

No jardim dos dias de febre

Reconciliai
eis que o outono
está às portas
Reconciliai
enquanto
as folhas
ainda recolhem
o verde das ilhas
e na boca de suas flores
tardias
ainda a seiva escorre
Reconciliai
pois o manto do medo
já envolve
famílias
em folhas cobres
neste março
de difícil estadia
Reconciliai
pois não sabeis
quando o Juiz virá
com sua cavalaria
nem quando
o ocaso do sol
cairá sobre o rio
de vossa vida
– se o que vem
virá
por estrada
por mares
ou trilhas –
sendo assim
é bom
ter o amor em dia.

27 de fevereiro de 2020

Esponsais

para Michele

Assim como esse azul
é próprio do céu de maio
eu sou teu, amor, e você
é minha
esposa relicário
feito o cheiro das flores
veste de cores os galhos
e informa que Deus
reconcilia em si
azuis noivados

15 de fevereiro de 2020

Arqueiro

"Não terás medo do terror de noite nem da seta que voa de dia" - Salmos 91:5

As mãos tremem, a voz
é um fio de areia no vento.

À corda retesada, o arco
alinha-se ao alvo, dentro.

Que minhas mãos tremam
Senhor
mas não trema o pensamento.

Que esse arco oscile
mas a flecha chegue ao centro

do que queres que eu seja
sobre a rocha que és, sendo

o futuro da seta
Pai
o alvo em meu peito.

4 de fevereiro de 2020

Com quantas árvores se faz uma floresta?

Andando sob o sol do meio-dia
iam, pelo campo, dois irmãos.
Iam, um rapaz e sua irmãzinha,
buscando sombra fresca no sertão.

Ao verem, então, um cajueiro
perto do muro da velha escola
(enquanto suavam, vermelhos
no bafo quente daquela hora)

sentaram na sombra, felizes.
A menina sorriu e o moço disse
apoiando-se sobre a primavera:
"Essa árvore é uma floresta?"

Ao ouvir isso, ela se espantou.
"Floresta, irmão, é muito mais!
É cheia de bicho e tem tanta flor
que de contar a gente nem é capaz!"

O rapaz de novo questionou:
"E aquela família de canários
perto das flores, morando no galho?"
E ela: "Falta ainda mais cor".

"Então me diga: o que é esse lugar?"
o irmão falou, apontando o prédio
algo meio em ruínas e meio em tédios
do antigo grupo escolar.

"É uma escola...", a irmã sussurrou
com pouca certeza, só de ler no muro,
mas corrigiu a si mesma com ardor:
"Pra ser escola falta aluno!

E pra ter aluno, cadê o professor
e quem cozinhe e quem pinte a frente?
Pra ser escola falta coração de gente
secretária, auxiliar e diretor!"

Ela entendeu a pergunta do irmão
e seu olhar mudou em verdes mudas:
é com muitas gotas que se faz a chuva
que cria a colheita para muitas mãos.

Escrevi esse poema ao esboçar um projeto para meus alunos, como estímulo para atividades que pretendo desenvolver com eles. Baseei a simplicidade desses versos em uma divagação exposta por Ortega Y Gasset em "Meditações do Quixote". Em tal obra, com palavras diversas das minhas, ele faz a pergunta que dá título ao meu texto.

15 de janeiro de 2020

Veremos, verão

"Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido." - 1 Coríntios 13:12

Chove e é verão.

Vejo o romper dos raios pela janela
luzindo seus ramos de trigo na noite.

Minha pequena
missão é esta:
ser poeta.

Anunciar a Glória de Deus
que há em todas as gotas
e em ampla luz retórica
anunciar o que apenas
vejo em frestas.