21 de dezembro de 2017

Em Sodoma

Alguém leal, agachado diante das brasas
triste em cumprimento ao seu próprio coração
percebe que a alma pesa mais em Sodoma
embora o corpo feito penugem embriagado voe.
Alguém leal, melhor, maior, constata
a gratidão e a honra como madeira e corda
de um arco sem flechas restantes. Compõe:

"a alma pesa mais em sodoma
arquétipo granito de egoísmo
contanto que tenha havido espírito
e seja soterrado pelo abismo
contanto que o olhar tenha sabido
experienciar o fogo dos sentidos
terremoto ígneo e difícil
em sodoma haver o peso dos vícios
sodoma eles te amam o peso
que em israel sequer haviam tido
sodoma tem muitos filhos
que nela ancoram fluidos aflitos"

O fogo nos estandartes queimados
em frente ao acampamento de batalha.
As bandeiras que estalam
espalhando o som da fogueira.
Em Sodoma quem tem alma
sofre diante das brasas.
Em Sodoma quem tem alma
não tem mais nada.

17 de dezembro de 2017

O livro de sal

A guerra já vem nos afastando por um ano.
Hoje consegui ligar para ela. Ela me disse
que só consegue ler quando solitária
ou quando próxima de mim. Disse
que no campo de refugiados é impossível
e que não ler torna tudo aquilo pior.
Será porque
a leveza entre nós dois é idêntica
a de quando alguém está em paz num eu?
Ela diz isso à distância
na distância que às vezes grandes almas têm
para que, faróis, iluminem áreas não sobrepostas.
Ela disse depois que tinha de ir. Disse
que me amava, sonhe com Deus.
Fiquei feliz por havê-la no mundo e desliguei.
Agora estou de guarda na noite
quase calma do litoral e posso sentir
que quem tem no coração o valor exato de tal amizade
terá as mãos firmes no timão durante a tempestade
terá o espírito calmo
quando explodir o trovão destinado
lendo no maior furacão
o livro de si. Troveja. Ou será a artilharia?
Troveja. Que venha a tempestade.

6 de dezembro de 2017

Michele

É natural a um homem de ouvidos cansados
a paixão por essa mulher de silêncio denso em noites
o olhar que à luz no escuro refulge laminar
seu abraço fogo apaixonar
quem suava frio

É natural porque ela lembra uma espada
desembainhada sob a lua
o triunfo exato do crepúsculo num regaço
qualquer eclipse ao meio-dia
o tato do sol nas bocas frias

Essa mulher de pouco dizer de muito cuidar
me lembra o que eu seria
se ao não ser o que sou
eu fosse mulher
uma floresta incógnitas trilhas
essa mulher que me esculpe de sonho

26 de novembro de 2017

Self-made man

Eu quis ser amado, sobretudo amado, coisa
que trabalhando nos arrozais não era possível.
Eu via as belas camponesas entregues
aos outros, vencido, transtornado, grande
minha fome de vínculos ternos íntegros
meu corpo sangrando na condição ímpar
de independência compulsória
solitária. Eu quis ser amado.
E vendo o preço dos amores
eu quis comprá-lo. Os carros, os filmes
os cavalos: eu quis comprá-los.
E o ouro foi o mensageiro alado
e pálido a preencher o delgado desprezo.
Eu quis ser amado. E enfim sou.
O ouro fez com que os corações
voltassem a face para o meu beijo.
Eu sou amado. Hoje, sim, eu sou amado.
Olhai os cromáveis aros do meu arado!
Sou amado. O corpo agora insolitário.
Eu sou amado.

23 de novembro de 2017

Apontamento no banquete de aniversário

Os campos não aprenderam a reter mais verde e os rios ainda fluem com idêntica maestria de há 23 anos. O sol se mantém indiferente à nossa condição ínfima e mortal (indiferente à mortalidade dele próprio) e nada aponta que as intempéries rosnem com mais ferocidade. No entanto: a diferença é que desde lá existo, tenho olhos e cheiro, tenho pele e vejo, tenho nariz e toco. O universo já existia, antes de mim, a diferença é que agora ele existe.

21 de novembro de 2017

Biblioteconomia

O céu noturno latejante de galáxias tem
sílabas imensas de luz, amor e destino
mesmo se não as vemos na tempestade
mesmo quando não cremos que estrelas
ainda existam, porque de não as ver
deixam de existir, nos interrogando o que
faz o céu sob a capa dura das nuvens?
indecifráveis poemas sonhando dilemas

E ontem, e à noite, chovia: em nosso quarto
e além dele, nos campos macios dos índices
tombando os frutos sumarentos dos sumários 
a pele era a página com que nos compunhamos
longe das fronteiras marciais letras de arame
longe dos altos oceânicos letras de atol
longe de juízes rancorosos letras perenes
perto inclusive dentro apenas letras de amor

17 de novembro de 2017

O velho devedor

Vi vultos vindo na lava
do oitavo dia. Desvario? A vida
ex-verde das dádivas velhas.

O Monstro Dípode

para Davi Luiz Capelari, na ocasião de seu aniversário

Quem vê
os músculos retesados até seu auge
de aço, trabalho, combate e cansaço

pergunta se pode ser
de um homem bom
ter nervos solares

"Pode a robustez do monstro dípode
aparar macio as flores no pasto?"

Pode

É o forte caso do
coração mole envolto
em um rijo campeão vasto

7 de novembro de 2017

O irmão aconselhador

A constituição de um homem é o seu caminho
cheio de azuis que seja ou cheio de espinhos

Como homens grandes não cabem em façanhas
os homens menores cabem em qualquer ninho

Como um dia fui às montanhas
irás para o mar - e também sozinho

Reencontro

a longa cólera enfim resoluta, o gordo
fio enfim desembaraçado: o mesmo
olharzinho de primavera
o mesmo bocejo doce
cor de canela

Ensinamento no banquete dos jovens pais

Se o filho pródigo não tivesse levado sua parte em ouro, ele nunca retornaria à casa paternal. Em primeiro lugar porque se desde o início ele nada tivesse a perder, ele nada teria para recuperar. Em segundo lugar porque o consentimento da família transforma a transgressão em exercício de estilo, em fruto espontâneo da adolescência. Em terceiro lugar porque ele foi odiando a mansidão do pai, seu consentimento, e a despedida banhada em ódio já planeja o retorno. Nas três razões, o mesmo mote: é o ódio quem afia o amor e o torna perfeito.

5 de novembro de 2017

Penélope

Sim, eu já sabia que seria pouco o teu ficar. Mas
ao cultivar seu corpo de perfumes em mim houve
o delírio: construir uma casa de estadia milenar.
Sim, eu já sabia que o florescido no verão morre
vindo o outono, e que não em vão sem dolo
as árvores se mantém invictas no lar.
Porém: o que fazer com os cômodos
que cultivei, as amplas portas feitas
para um par, esse leito há décadas
com cheiro de há pouco?

4 de novembro de 2017

A depressão da musa

Entre os dedos da tarde licorosa
se fez triste vossa carne perfeita.
E seu olhar, outrora rósea tocha,
te fez entre tristes a bela eleita.
Que más nuvens, em nívea tela,
as olheiras em temporal desfeito!
Que melancolia e quanta guerra
vindo vil do auto-desrespeito!
Recuei, na ocasião, de medrar
em te ver desvanecer. Hoje no ar
me faço âncora aos vossos pés
procurando assim firme amar
não o que foste, mas o que és.

3 de novembro de 2017

Para escolher uma tatuagem

Dentro do símbolo
esse fogo vândalo
e dentro no sangue
marcas de pranto

Dentro do símbolo
um vínculo santo
e espíritos lívidos
pálidos enquanto

Dentro do símbolo
um norte estranho
às vezes sísmico
mas não garanto

2 de novembro de 2017

Quase 23

Nestes últimos anos (os únicos)
nada aponta na voz dos ventos
que a beleza tenha morrido

Por que o olhar cansado
então? Nada há que diga
sobre a vida ter esgarçado
seus panos, nem que haja
aumento ou desengano
nas presas do destino

O sol continua a ser
a bolha que estoura
com um dia de idade

Por que então
em minha agilidade
a ferrugem erradia
mesmo com mais
de mil?

28 de outubro de 2017

Discurso no banquete dos militares

Irmãos, irmãs: vejam como parte à nossa direita o sol que surgiu de nossa esquerda, imerso de esplendor como outrora emergiu. Olhem como se vai em amálgama róseo e magma, em cascata brônzea, mênstruo e nostalgia. Quando veio, há pouco, era fogo sobre esta face do planeta. Agora nos deixa, confiante que com a parte dele em nós absorvida iluminaremos a noite. Oh, meus iguais! Conseguiremos? Antes, aos soldados era dada a honra de protagonizar os cantos heroicos que se iniciavam com a invocação da aurora. Houve o dia quando a guerra habitava o coração da poesia. Agora, a nós fica resguardado o crepúsculo, apenas, e sua subsequente anti-esperança. Antes, entre macedônios, aborígenes, entre rodas de bigas e hussardos alados, habitava o anseio pelo heroísmo que fosse cantável. Porque antes respiravam homeros, porque antes não explodíamos nossos rivais, ao detonar de um explosivo, mas olhávamos fixamente para seus olhos. Vejam como se dispõem ciclicamente as estações: ainda morremos. Porém, sem a redenção de ser pela mão direta do inimigo. Vejam como glória alguma nos oposiciona em front, quando mortos em bombardeio. Vejam como o mesmo sol que engrandecia Aquiles nos diminui! Vejam o medo, a impessoalidade, a burocracia. O tambor, sem mais demoras aqui proponho, o tambor tem que nos ser novamente a principal artilharia.

27 de outubro de 2017

Solilóquio no baquete do náufrago

O amor muito dá, tudo tira.

Deu-me a areia, o engenho
áspero da fogueira e o mar.
Deu-me na espuma o vir ao
lar de sal e a uma nova vida.
Deu-me de não dar, tal vida.

O amor me tirou até
o que eu não tinha.

Pois quando o amor muito dá
é porque logo a falência
tocará sua lira.

O amor e seus olhos. O amor
e sua ira. A boca temporal
que nada diz. Aqui, longe,
porém: estou feliz e melodia.

Mas confesso uma saudade
tempestade de sofrer o vão
onde sou, na ilha.

Pois até isso o amor me levou.
Até a compensação
em haver melancolia.

24 de outubro de 2017

Tema para biografia de vó

para Fiori Ferrari e Paulo Gonçalves

Foi a princesa quem passou galopando
acima do monte, em seu corcel santo?

A princesa foi perseguir a onça branca
cujo couro rendado em beleza a alcança.

Foi a princesa quem passou sem nos ver?
Sem ver quem a via galopar sem poder?

A princesa foi perseguir um elixir
úmido pelas lendas do velho vizir.

Foi da princesa esse trote de rápido som
perseguindo o vento preso no acordeon?

Foi: e logo a princesa cheirando à jasmim!
Passou por nós - por que não? porque sim?

Ela foi: eu não. Aqui fiquei
no chão, perseguindo a mim.

Exposição no banquete dos bonachões

Sou como o Bobo a quem permitem dizer tudo, por estar tão próximo da sabedoria quanto o sol está próximo do viaduto. Assim sendo, aproveito para contar do meu jeito um ocorrido de ontem à tarde, de durante a tempestade. Eu ia para uma consulta médica, bem longe de casa. Teria que pegar dois ônibus, ou, como fiz, pegar apenas um e andar alguns quilômetros, poucos e rápidos. Logo que comecei a caminhar, no entanto, trombetas trovoaram e a água me veio. Que chuva! Sempre carrego a sombrinha, então abri suas asas (uma delas: quebrada) bem rápido e fiquei numa boa. Estava no centro da cidade, por isso vi, como os senhores devem imaginar, as pessoas surpreendidas correndo correndo correndo, tendo que parar de correr quando diante de um sinal vermelho. Ora, era uma tempestade! E aquelas pessoas tinham que ficar debaixo dela enquanto os motoristas passavam intactos e eu me resguardava na pequena sombra, esperando o verde pintar no longínquo outro lado da avenida. "Vou oferecer para esperarem comigo aqui embaixo", pensei. E fiquei pensando. O sinal abriu e continuei lá, pensando. Ora! Não riam: é preciso muita coragem para ser bom. Ontem percebi isso. Porque falhei em muitas ruas, ao tentar me aproximar de pessoas encharcadas, para tentar ajudá-las. Então parei para comer uma broa de fubá e tomar um queimado, aquele leite quente com canela, virado para a rua, olhando. Se fosse por mal, seria fácil. Se fosse por vaidade... Bem, é, talvez fosse por vaidade, quando se pensa que estou falando aqui para todos vocês o quão bom sou ao tentar ajudar... Mas vejam: o Homem de Face Serena já se irritava com o filho que diz "irei trabalhar hoje para você, meu pai" e não vai. Quem sou? Pois bem: eu continuei meu caminho, insatisfeito de covardia. Parei em mais um sinal, desistido. As gotas quebravam meu rosto contra o ruído crepitante do asfalto molhado. Olhei para o lado e vi um senhor de muleta, descalço, atravessando entre carros e fora da faixa. Quase atropelado! Fui até ele e o ajudei, dando meu ombro, a secura por alguns minutos, algum apoio. Vejam: não importa o quanto eu quisesse, antes, ter ajudado. Até para isso há momento propício! Porque, enquanto eu o levava, caí e por isso estou com a mão enfaixada.

23 de outubro de 2017

Excerto de louvor no banquete dos ex-escravos

vocês os que sabem que vão morrer a simplicidade mais limpa e elegante olhos milenares fundos e sem par os que souberam que morreriam sobrevivemos nós o fogo queimado por algo ainda mais quente louvados sejam sobreviventes do ferro das correntes que sugavam nutrição de nossa carne e que hoje nos alimentam com a memória a partir dessa dor louvada seja a notícia de que morreremos mas não hoje nem agora louvada seja nossa força de estuprados nas galerias horrendas bem-vindos ao mundo exterior irmãos aqui a cabeça erguida de quem sabe que vai morrer haverá de localizar um local de valor um terreno ansiando sementes sim meus irmãos morreremos mas não hoje nem agora o mais difícil já foi feito sobrevivemos

21 de outubro de 2017

Brinde no banquete do sonhador

Shakespeare e Cervantes morreram em abril de 1616. Desde então, sou um homem sozinho num front onde caberiam milhões de vocês, aliados. À frente, o inimigo ressentido de ter estratosférica vantagem e ainda assim estar prestes a ser derrotado. Moinhos caiados. Caberia uma citação valorosa e marcial! Qual, no entanto, o tom? Quem tocaria os tambores para minha voz andar ao lado?

20 de outubro de 2017

A representação da nudez feminina ao longo dos séculos: um resumo

Entre vinhedos, a flor.

É por conta das flores
que a primavera acontece
vigorosa áspera cruel
seivada com a saliva
dos dias castanhos

Os méis, os aros, plexos
rodeando parélios de pele
lambem esgotados nichos
pastam esguios mangues
mas eis caem sucumbidos

Asas e têmporas, gosto de
cheiro ferroso: o mênstruo
de minha amada lembra
o sangue de Dário
dissera Alexandre Magno
às portas da Índia

As montantes virilhas
os viris duelados
a morte por elas
a sagração das vaginas
sua ausência imanente
e o prestes à

19 de outubro de 2017

Suvio

Há uma criança de olhos calmos
quando a paz consente em mim.
Ela vem me ver sempre que pode
com um frutal de palavras boas.
Ela vem me ver sempre que quer
os cabelos por cortar, ondulados
cheiros de pão recém assado
em casa. Veio se unir a mim
depois que desisti de chamá-la
porém quando ainda a esperava.
Sério seu rosto sorrindo
ela vem de onde o dinheiro
ainda não existia e a vó sim.
Ela sabe de tudo que já esqueci
e tem tudo o que já perdi. Ela
é uma voz de armistício.
O eco de um assovio
muito antigo.

12 de outubro de 2017

Trecho de inscrição em cântaro

para Lucas Romano e seus filhos

Havia Helena, que tinha cheiro de colo.
Havia Apolo, que trazia o sol na veia.

Porque o Lete estendeu seu longo corpo
para fora das margens do mundo morto

e Apolo e Helena, jovens iguais, viessem
sedentos buscando água há horas de prece

o Esquecimento se lhes ofereceu no solo
umidade pouco lar na floresta pequena.

“Se eu beber”, disse Helena, “não
saberei que um dia foste meu irmão”.

Assentiu, Apolo: “Melhor morrer
de sede do que esquecer você”.

O rio que vinha para fender o mundo
separar o primeiro daquele segundo

então foi negado aos pés do amor
aos pés da sede negado o seu fervor.

Por Apolo, que trazia o sol na veia.
Por Helena, que tinha cheiro de colo.

26 de setembro de 2017

A batata cozida

Agradeço largo à batata cozida
que em si guarda tutana vida de
suster nutriência em mim grata!

Por que não é tudo no mundo
uma maciez boa de batata? E,
sendo firme, também novada no
fogo, vida com maciez de água?

21 de setembro de 2017

Ciação

Saber de cór o cio
às cordas da voz
curva o sol
contra a canção
que nasce
e cai

Quando criar
cevar corações

Oh os cornos do som
agarrados à composição!

18 de setembro de 2017

O ser humano culto

Oculto o útero de onde brotou
- mas que olhos! Que manhãs
contra os lodos! Erige pontes
no ar, conexões sem vultos
mil césares mil muitos mui antes!
É um presente astral, todo humano
culto, do caos aos dormentes de
plasma, transidos de insulto.

11 de setembro de 2017

Um Astronauta

Se eu compreendesse a flor que cai
Compreenderia o universo
Pois o Todo está incluso em Tudo
Pois o que pulsa em um pulsa no infinito
E a face de Deus que habita os sóis
Habita os diminutos cristais

Mas a flor que cai não é sua saliva de seiva
Seu sorriso de orvalho
Meus únicos interesses dentro da primavera

Conhecendo completamente sua boca
A partir dos cometas líquidos desse Céu
Eu chegaria a conhecer o universo?

No entanto não saberemos
E parto pro universo que incompleto
Não mais contém você

5 de setembro de 2017

Discurso no banquete dos exaustos

Assim como a mãe nunca desafina
ao cantar para os filhos sonolentos
o vento do destino não destoa
dos úteis atos aos seus rebentos

"A dor", tal vento soa, "vos ensinará
mais prazer no prazer", tal vento diz.
"Eu poderia gastar todos os lábios
do mundo, meus pulmões, para soprar
o cinza giz que cobre vossos corações.
Mas se eu o fizesse
e lhes soprasse
o que sobrasse...
Nada sobraria"

Bendigo o arrependimento
pois esta é a prova áspera
de que sei o que precisa ser feito

Bendigo a tristeza
pois esta é a prova bélica
de que conheci a beleza

Bendigo a saudade
pois está é a prova ômega
de que vivi de verdade

2 de setembro de 2017

A arquitetura do bocejo

arqueia o som do sol
o tédio a língua o céu
o sono lambe o véu e
a boca circula em atol

o sábio
diante do esperto
o vilão
diante do lerdo
o bom
diante do mau
eu
ante o resto

arqueia o som do sol
o tédio a língua o céu
o sono lambe o véu e
a boca circula em atol

28 de agosto de 2017

Bebê rindo

para Amora

O seu riso
é um mapa
cujo peso
me navega

Arco alvo
é tão leve
lívio trevo
brota e tece

O seu riso
fina capa
quentinho
me guarda

É um livro
uma espada
um espelho
uma prece

25 de agosto de 2017

Confissão no banquete de nós dois

Os unicórnios são poderosíssimas feras prateadas de sonho, muito superiores aos cavalos no que diz respeito ao vigor - porém muito mais frágeis no que diz respeito à beleza. São caçados por sua magia em vastos campos, vencendo armadilhas e ataques cobiçosos contra sua liberdade, sendo ferozes na batalha e ágeis na proteção. Eles, no entanto, possuem a fraqueza dos poetas: os unicórnios se pacificam diante de uma donzela e, tal a ternura, adormecem em seu regaço de fonte. Presa fácil, daí em diante. Eu estava pensando nisso, enquanto você fazia um ninho para os seus dedos com o meu cabelo. Há homens, a maioria absoluta, que por nada deitariam com a cabeça no colo de uma mulher em público, por maior o amor que sentissem. E ali estávamos, sob um ipê em flor, no gramado da praça, onde muitos esperavam o ônibus: minha cabeça exposta no seu colo. Eu derrubei um pouco de cerveja em mim e você me repreendeu, entre maternal e lua. "Você é mais antiga do que ipês, mais antiga do que a morte, a vida e a volúpia acelerada das estrelas", observei de mim para mim, olhando assim, do porto de você. Mais antiga do que a própria noite. Mas eu dizia que estava pensando em unicórnios. Sim. E veio a questão: antes ser um cavalo, fraco onde todos os mortais são, escravo forte pela insensibilidade?, ou ser o heráldico, o grande, o perseguido e forjado com as cordas do sonho, para ser assassinado enquanto adormeço sob as mãos do amor? Você, entretanto, me protegeu - e sobrevivi.

23 de agosto de 2017

Vento Mulher

O vento que esculpiu teu dorso
certamente arredondara o sol
e o coração dos dias. Qual
é o vento que te me trouxe?
Certamente o mesmo que derrubou
as flores do ipê que pensava
em amarelo te superar quando floriu.

19 de agosto de 2017

a tarde goiabas

e essa guerra que não acaba mais
você disse com os olhos moles
boca cansada de amor interdito
entorno fogueiras fiambre e mausoléus
os cabelos tornavam-se selvagens
água boa só da saliva um do outro
conforme os meses marchavam
embornais
e essa guerra
que não acaba
chegamos a um sítio abandonado
goiabeiras era época de goiabas
nada que nos interessasse
de suprimentos
além de goiabas
rodei seu corpo e rompi os frutos
podres no chão
com sua pele cor de tronco
continuávamos nus
horas depois
aqui acaba a guerra pra nós
foda-se o front
havia um velho balanço
sua carne atravessava brutal
as correntes do balanço
o sol
atravessava
a guerra
atravessava
o cheiro amadeirado
escorrendo da sua virilha
o gosto de sangue
enfim choveu
naquela tarde goiabas
acabou

6 de agosto de 2017

O aço, o bagaço, o braço

A prostituta cotidiana com cheiro de aço
circula as ancas descrevendo laços rumo
ao som dos passos no caminho logo atrás

A mãe põe no espelho os olhos de bagaço
cogita o fim da família que a suga o sumo
e repele o abraço morno do filho incapaz

O ferreiro sente ecoar nos ossos do braço
a força que derruba e corta o espaço rumo
à bigorna negra no fogo dos anos abissais

Nenhum deles derrama choros eventuais
Nenhum reclama da vida e seu mormaço

3 de agosto de 2017

parque de diversões no interior

é noite

seu nariz está frio

como de um cãozinho

cores luzes cores cores

maçã caramelizada e cores

uma criança em você

cem crianças fora de nós

Deus olhando de dentro

do seu sorriso pequeno

e vermelho

28 de julho de 2017

Êxodo

E sendo um dia claro, com sol no centro
os povos urbanos vinham por dentro
dos caminhos, sorrindo. Eram guiados
pelo poeta assinalado, enfim coroado
e tinham entre os dedos longos cantos
nos olhos muitos verdíssimos mantos
na boca a paz sem idade dos alforriados.

Os povos da cidade vinham lentos, sorrindo.
E buscavam fontes, em bosques vizinhos.

Sendo pobres, negros e brancos de braços
largos, sabiam de orgulhos antepassados
em tirar fartura da terra, pão leite vinho
tudo o que os senhores lhes dava contado.
Desceram dos morros, vieram das fábricas
sem ódio e rancor, só esperanças e áfricas.
Encararam o futuro com olhar de amor
e caminharam amor e sussurraram: amor.

A multidão era ela própria uma fonte lírica.
E o poeta à frente, jorrando hinos de louvor.

No entanto, nem todos viram a chama íntima
que trouxe os povos da cidade aos campos.
Alguns, enviados pelos senhores, tantos
quantos eram muitas as flores, aguardavam.
Feito num atol, aguardavam. Sem irmandade
mínima, aguardavam. De pólvoras e espadas
nas esquinas da floresta: aguardavam. E só
o poeta, cheirando profecias do sol, sabia.

Mas seu coração era boa água tranquila.
Pois também lhe profetizara saída, o sol.

A alegria dos oriundos da urbe era lima
afiando os versos do poeta, que crescia.
E ao já ver despontar olhares feito setas
olhares raivosos sem o clima que guiava
já tinha mil metros, o poeta, e a cada
passo se maiorava, de tal forma inquieto
fazendo de si mesmo gigantesca aljava
que com pressa os rivais fugiram de medo.
Sorriu, aliviado, com Deus como epicentro.

Os povos da cidade vinham lentos, sorrindo:
bebiam o riso do êxito, e tal êxodo era vinho.

20 de julho de 2017

o jardim dos reinícios

o longo ponteiro dos dias
lâmina fraternal de azul
abriu no ventre do acaso
o nosso encontro

porém
em tempos de reinício
tal encontro

e em tempos de reinício
como confiar-nos à paz
do coração em solstício?
à paz de saber-se destino
ao caos, vento ao sul
que desfaz sinos?

finalmente
em um jardim
tal resposta

como tomar nos braços
o hálito do sol
ganhar-lhe o interior
de verões cíclicos?

olhando
de frente
o presente

finalmente
em um jardim
tal resposta

o presente
é um jardim
de sementes

17 de julho de 2017

argumentorum

a poesia se faz em liberdade, igual ao amor

o amor se faz ao sol, como a liberdade

a liberdade cheira à poesia, quando ao sol

o sol se faz dentro do amor, igual à poesia

11 de julho de 2017

Serenatinha

Difícil ousar dentro de julho desejar mais
do que julho já traz, em seu azul verde
de orgulho, em seu olhar frio de paz. Mas
ouso: na solidão, na tarde aberta em rede
atento ao infantil sol lilás, peço passos
pequenos no espaço do meu coração.

Julho: eu quero uma menina alegre
mais leve que o vento e o céu são.

Você, julho, me consegue
uma menina-canção?

Uma menina que não fale nada adulto
cuja sombra não seja vulto, mas clarão.
Que desconheça luto, dinheiro, entregue
à poesia e seus frutos, que diga "a gente
pode morar dentro de um cheiro?" e que
bem serelepe segurasse Deus na mão.

Julho: eu quero uma menina alegre
mais leve que o vento e o céu são.

Você, julho, me consegue
uma menina-canção?

4 de julho de 2017

eu disse palavras ao sol naquela manhã fria

eu disse palavras ao sol naquela manhã fria
enquanto o remorso abria grandes clareiras
no zelo de nações sem heróis nem bandeiras
na floresta incendiada (nós) no gelo do dia

os grandes campos, Maria, de hálito retido,
os desejos, Maria, soterrados na burocracia

muitos anos se fecharam em redor, desde então
muito mito estofei sobre sua imagem de degraus

e assim o que nos liga se manteve firme, linha
tão inconsútil como são as linhas da sua mão
e tão maciça quanto o fio que une Deus ao aparente caos

30 de junho de 2017

Cantos

A água nunca envelhece
O cântaro sim

A água: as canções que te dediquei
O cântaro: você em mim

29 de junho de 2017

Cebola

te corto e acabou:
as antessalas aureoladas
na ardência, camadas
sob a pele cobre, violência

cebola: quem te irmanou
ao meu espírito
só círculos e vícios
e dentro não mais nadas?

26 de junho de 2017

Canção de confiança

Há a crença em alguma beleza
no olhar de estrela da criança
no riso que lança sobre a mesa
ao ver o presente que não alcança

Há a crença em alguma beleza
no som sem cordas que dança
em nós quando vemos a tristeza
no que é alheio e sem esperança

Há a crença em alguma beleza
e há mais outra coisa que avança

Há a beleza, de fato, e a certeza
de que nela haverá confiança

19 de maio de 2017

Rural Sacerdócio

muitas vozes no entorno de mim
espalharam pelo capim tais terríveis
palavras: "quem cuida dos cuidadores
dos sensíveis amadores que espalham
amor?"

a voz nutridora do fogo que une tudo
cujo calor fundo nos revigora contínuo
respondeu no entanto à voz do mundo
claro feito um sim claro feito um sino:
"aquele que cuida é cuidado pelo
próprio amor matutino que dedica

pois quando a mão alisa o cavalo
também os dedos são acariciados
nos pelos equinos que acaricia"

8 de maio de 2017

Lição de poesia para Amora

Tem palavras que se parecem
e são bonitas. Um exemplo é: sal
e sol. Aí você mistura as palavras
pra que a imagem faça cosquinha
no coração. Um solzão feito de sal.
Imaginou? O sal sendo pozinho de sol
bem brilhante mesmo. Imaginou?
É isso. Mas também é o contrário.
Quando palavras não se parecem
e quando a gente lê toma um susto
idem de novo a cosquinha a gente sente
assim: caramujo de gude
árvore sapatinho
pão relâmpago
etc É isso. Mas também é mais.
Quer abrincar de?

12 de abril de 2017

Cantiga de Abris

poema selecionado no concurso Poemas no Ônibus e no Trem, da Prefeitura de Porto Alegre, em 2012

O que quer dizer
diz. As coisas
precisam da tua voz
para existir.

O que tua voz quiser evitar
daquilo que tu sempre quis
ignora: que do rubor
não nascem rubis

que só por dizer-se
alegre
já se é
feliz.

11 de abril de 2017

Quaresma

para Rodrigo Faustino, na ocasião de seu 25º aniversário

"Eu vim para lançar fogo sobre a terra: e como gostaria que já estivesse aceso!" - Lucas 12,49

O coração ocre do deserto
purificado pelo sal do suor
haverá de me apontar, Pai, o certo,
haverá, Senhor, de me dar o melhor.
Pois as rachaduras em meus lábios
florescidas na ausência de tua água
formaram setas rumo aos sábios
provérbios de penugem calma
e feridas que, agora abertas,
um dia, benditas, irão se fechar
sob o sol santo que é par
dAquele que disse aos poetas
"Deixem se alastrar o fogo!
Pois fui eu mesmo quem o trouxe
e aqui o derramei, neste chão arenoso".

6 de março de 2017

Os reis de copas

Cada coração humano é um reino milenar
Com infinitos castelos de inumeráveis cômodos
Exércitos sérios duquesas adultério vinho pântanos
E cada coração humano é diferente embora todos
Sejam reinos e conheçam o sol a chuva e a noite

Há os reinos costeiros cuja saciedade provém do sal
Que mesmo estéril faz saúde brotar no iodo cotidiano

Há reinos de ouro maciço onde povos miseráveis
Escorrem de fome diante das ameaças dos soldados

Também os que são habitados por poucos súditos
Poucas árvores poucos bichos - reinos dormentes

E há brasões. Muitos! Tantos quanto são as estrelas
Que faltam para transformar a noite em pura luz

No entanto todos os reinos são isolados e só conhecem
A si próprios; um reino manda emissários a outros reinos
Pelos dedos pela boca pelos olhos pelo cheiro
Os emissários nunca retornam e o reino vizinho
Continua tão desconhecido quanto antes

De curiosidade tristeza impotência
Alguns reis choram desconsolados contra o veludo mais puro
Outros dão banquetes e mostram-se trôpegos e indiferentes
Outros dizem sequer lembrar de emissários um dia partindo

Todos porém ficam preocupadíssimos
E meditam tal solidão

1 de março de 2017

O Instinto Astronauta da Espécie

Quando a mobília da alma de um homem
é esculpida na pedra, não comprada já pronta
Quando seu ódio se alarga a ponto de abrigar o ódio de todos
e sua calma começa a demonstrar o Caminho
Quando o suor da própria terra se confunde ao seu
e profetas de longínquos areais sorriem a sua seriedade

Então seus irmãos passam a ter esperança
e um empenho marmóreo no trabalho cotidiano
banha-lhes em infinita juventude

Quando suas rugas e seus andrajos posicionam-lhe
entre valorosos primórdios e o futuro absoluto
Quando ao falar ele parece pegar ao colo
cada um dos seus e protegê-los feito um pai
Quando ao redor do fogo ele conta de sonhos
em planetas de místico jade e doce capim

Então toda a raça reconhece-se no universo
como estrelas a comer estrelas ou alimento
a suster a tarrafa das constelações

Quando, enfim localizado, este homem sobe furioso
de madrugada à montanha mais próxima de Deus
Quando constrói com o próprio sangue entre as unhas
algo ogival tão rápido quanto muscular e divino
Quando vai banhado em lágrimas jurando retornar
e deveras retorna, tão glorioso quanto são e sorrindo

Então toda a aldeia passa a carregar em si
um olhar pra cima e ir além
um olhar pra si e ir além
um Olhar

Aula de medidas para Amora

O bebê é menor que um planeta
E isso eu também sou
O bebê é menor que um rio
E isso eu sou também
O bebê é menor do que eu
e isso - também sou?

Pois me diminuo infinito
diante do sorriso enorme
do bebê