30 de dezembro de 2019

Minha esposa, fonte

"Bebe água da tua fonte, e das correntes do teu poço." - Provérbios 5:15

A mim foi dada uma fonte de olhos calmos
sobre a qual, nas noites quentes, há estrelas.
Elas ecoam nas águas o frescor de um salmo
enquanto o vento abre o cheiro das gardênias.

Vede, viajantes, que por este bosque passem
(e que por acaso no colo do verde descansem)
como nosso amor reverbera lagos e folhagens
para hidratar em mim o que era deserto antes.

Vede, camponesas, que nela buscai conselhos
(buscando ser também receptáculos de ternura)
como são puras nela as úmidas letras do tempo

e sábia é a sua arquitetura. Vede que essa fonte
é a minha esposa, amada eleita, saciedade dada
por Deus, que selou a Sua Água em nossa fronte.

24 de dezembro de 2019

Presente de natal

Eis que me semeei no árido destes campos
e quis colher do meu suor algo santo
para presentear o meu Senhor.

Das nuvens
esperei o pranto que os hinos justifica
e do vento vir o aroma da baunilha
para embrulhar com ele o meu amor.

No entanto, vede
que o meu Senhor existe desde sempre!
Fez os campos, o verde, os dentes
que rompem o núcleo dos frutos
e o próprio amor.

Qual presente
posso dar ao Senhor?

O Senhor existe desde sempre.
Mas escolheu nascer aqui
e conosco tem vivido.

Nada posso dar
mas o meu presente
é Ele ter nascido.

7 de dezembro de 2019

Um rei velho

"A minha alma bastante tempo habitou com os que detestam a paz." - Salmos 120:6

Eis a nenhuma justiça dos meus dias
eis a noite que rememora meus erros.

Eis os heróis de outrora, torres, vilas
que queimei para gozo do meu desejo
e eis o mar, campo que venci, sal, ilha.

Eis a nenhuma justiça dos meus dias e
eis o sangue espesso entre meus dedos.

Quem poderá limpar-me de mim? Quem
lava com azeite novo o arrependimento?

Volto meus olhos para as nuvens. Dali
vem a água que jorra dentro, dali vem
o Justo que justifica: eis a chuva limpa
vinda do reino que há sobre o meu reino.

26 de novembro de 2019

Conversão

"Se subir ao céu, lá Tu estás; se fizer no inferno a minha cama, eis que Tu ali estás também." - Salmos 139:8

Para o até então ateu, Deus é
a transfiguração da solidão
em contínua companhia.

- Minha carcaça então
não tremia sozinha
às portas daquele medo?

Deus é a descoberta
do dentro no dentro
arqueado e insolitário
do meu peito.

22 de novembro de 2019

A mensagem das estações

Para Michele, no 2º aniversário do nosso namoro

A pequena chuva desta tarde
traz no hálito uma mensagem:
virão amanhã nuvens maiores
enobrecer em cores melhores
a já boa vida dessas paragens.

Amada, o chuvisco sem alarde
hoje sobre as nossas pastagens
diz o seguinte: a vida venceu.

Pois se os frutos ficam maduros 
nas mesmas estações sem muros
e nosso amor campônio floresce

é porque a vitória da vida cresce
nos que se amando amam a Deus.

20 de novembro de 2019

Lição Areia

Para Gerson, meu pai

O tempo, este instrumento
de Deus, rearranja o areal
das dunas conforme o vento.

Se o deserto não sacia o sedento
tampouco cria muros, nega o aval
para a passagem de seu sofrimento.

Aprendi da areia tal movimento:
quando o bem não puder fazê-lo
ao menos não devo esculpir o mal.

18 de novembro de 2019

Graça Imerecida

Pai, quando os homens ergueram-me
ao pódio ornado de ouro e arrogância
(mesmo eu amando esse vil fermento
e essa nojenta dança) estavas comigo.

Pai, quando à coluna esguia do escárnio
acorrentaram-me, rasgando meus lábios
(mesmo que eu merecesse um alto juízo
ainda maior e mais frio) estavas comigo.

Pai, e quando o tutano nucleico da fé
deu meu olhar para a única luz que É
(mesmo no breu severo do meu peito
sem abrigos e leitos) estavas comigo.

Nem sempre estar presente eu consigo
(porque pensar muito na segunda faz
com que não vivamos o domingo) mas
Você, Pai, para sempre fizeste-me filho!

E por Graça e Amor sempre estás comigo.

12 de novembro de 2019

Amor, jardim flanqueado pelo vento

Amor, jardim flanqueado pelo vento
às vésperas da tempestade: as flores
e os frutos de seus verdes se abrem
em aberto coração à espera de águas
nesta tarde. Amor, jardim, aguardas
nas bocas habitadas pela sede dentro
contra a infecção da seca o advento
de Deus retornando para renová-las.

6 de novembro de 2019

Poema sob João 12:24

Quem na terra não é amado
mais ainda deve amar. Eis
a flor rasgada pelo arado:
ela aroma enquanto morre
e morre semeando-se no ar.

29 de outubro de 2019

As religiões

“Jesus declarou: ‘Creia em mim, mulher: está próxima a hora em que vocês não adorarão o Pai nem neste monte, nem em Jerusalém.’” – João 4:21

Por que se dividem os homens
em religiosos regrados montes
a louvar cada qual uma cidade?
Não veem que em torno de poços
diferentes e iguais aos vossos
buscam uma idêntica água? Pois
cada um acredita de si a árdua
tarefa de agradar mais a Deus!
Mas só podemos agradar igual:
ao fazer em nós jorrar o amor
pelo Único que Lhe Agradou.

26 de outubro de 2019

Oração Manhã

Deus, que vê minha fraqueza opaca
como se fosse de luz a coragem maior
e reluzente: não permita que eu parta
e seja minha morte um partir indiferente.
Permita que eu entregue o meu melhor
em holocausto aos que amo, de repente,
e na morte minha alma escorra feito suor
- carta contida no envelope da pele quente.
Ainda quente mas em breve fria. Permita,
Pai, tal alforria! Invadir o curso do projétil
que rumava ao peito da musa, solar ferida,
e, morrendo, salvá-la. Que torne-se fértil
a óssea dor! Faça, Senhor, útil meu último dia:
após ser duro viver, ser doce ver seguir a vida.

23 de outubro de 2019

A nossa casa

Eu chamei, a quem amava, e disse
"façamos, amor, uma casa". Mostrei
a ela a fundação em lisa rocha firme
e as paredes em riste construímos altas.

Ela bordou o lençol verde das plantas
eu escrevi as amplas janelas da sala
Deus esculpiu em nossas almas o sol
e como telhado nós entalhamos asas.

Eu chamei, a quem amava, e disse
"moremos, amor, nesta casa". Vimos
então na nossa casa o amor aromar santo
e dos cantos brotarem flores multiplicadas.

10 de outubro de 2019

O pão de cada dia, sim, o Pai dá
- que pão pro ano todo mofaria.
Que triste essa sina de acumular
em um só mês o de toda vida!

Pouca água, óleo, pouca farinha
- que pão pro ano todo vai mofar.
Feliz do que ganha no pão que dá
com trigo e suor a sua sabedoria.

9 de outubro de 2019

O Amor Espadas

Aquele que ama
este sim
conhece a Deus.

Vede na manhã verde os campos úmidos
pela saliva da noite, enamorada, vede
a paixão com que a semente rasga
a pele da seiva em busca de luz
e os filhotes aguardando seu quando.

Vede o bom fogo
no coração do santo.

Aquele que ama
este sim
por Deus é conhecido.

E aqueles que não amam
alastrando sua insânia
em cordel neste século hirto
estes
que vendem o sol e o quente
serão subjugado pelo amor, vede!

Cairão pelo Grande Amor em Deus
pelo Amor Espadas no Dentro
do Seu Peito

cairão pelo Amor
que conhecemos
e conheceremos.

6 de outubro de 2019

No século líquido, o mar com seu sopro
tempestuoso avança sobre meu corpo
de todas as partes. Avançai! Não temo!
Pois na tempestade do líquido tempo
meu porto fundei na Rocha Eternidade.

1 de outubro de 2019

A Cesta

"Eis o que me mostrou o Senhor: Vi uma cesta de frutos maduros." - Amós 8:1

Isto me deram para dizer ao mundo:
quando aquilo que é perfeito vier
deixará de existir tudo o que não é.

Pois o que os vãos guardam de escuro
nas quinas da noite o breu sem núcleo
virá à superfície, sob os brônzeos pés
que aqui andaram e pisarão o lagar
e que vêm enfim para iluminar tudo.

Que vêm enfim para iluminar tudo
também as mãos que virão colher
e tirar do lagar os frutos maduros.

27 de setembro de 2019

As curvas do Caminho Reto

"Porque eu sei que o meu Redentor vive, e que por fim se levantará sobre a terra." -  Jó 19:25

Se meus pés me levaram até Babilônia
antes de me levarem até Jerusalém
não amaldiçoarei os meus pés
- como poderia
se já não distingo a estirpe
dos pós
que minhas sandálias levantam!

Quem chora e semeia nutre a terra
(oh lágrimas com textura de suor)
mesmo que não saiba, mesmo que seja
a terra do caminho até Babilônia.

26 de setembro de 2019

Fragmento XL

Depois de dias de chuva, chegar a um campo com cheiro de após batalha. Andando pela terra, margeando um fio de água escorrendo vestígios de sangue, meu cavalo e eu estamos tomados pelo hálito apodrecido do banquete dos vermes. Paro, desço de Fogo e colho apressadamente algumas folhas de alecrim que tinha avistado, enquanto os vultos negros bicam e dilaceram os corpos pelas frestas das armaduras. Espremo as folhas entre meus dedos e esfrego nas narinas esse perfume familiar, vivo, e sinto o bom cheiro inundar meu coração até então atormentado por aquilo que atrai os corvos. Pai, também é assim lembrar de Ti neste mundo circundado pelo negror, é também assim saber que guardas os que Te amam, igual ao balsâmico cheiro cobrindo o fedor dos corpos apodrecendo. Falta pouco.

Trecho de "Fragmentos do Templário"

19 de setembro de 2019

Com as mãos

O elogio desta flor acerca do sol
ela diz pela boca de seu aroma.

O elogio deste rio acerca da chuva
ele diz pela boca de seu frescor.

O elogio destas aves acerca do céu
elas dizem pela boca de seus voos
pela língua das penugens alegres
sem palavras, sem fala, só asas.

Que todos estes
ensinem ao homem
o amor sem palavras.

Que falem da mãe com o sorriso
falem da esposa com os olhos
falem de Deus com as mãos.

12 de setembro de 2019

Elogio

Durou dez hojes
mas o arenoso ontem
acabou.

Esta lâmina de sol
este corte que atravessa
o coração da manhã
usaste no meu peito
Senhor.

Sabias
que eu sobreviveria.

Isto sim
é elogio
e amor.

10 de setembro de 2019

Tardezinha

Ter tristeza é uma inconformidade
com o vento pés na rede de setembro.
Mas eu tenho.

Ser criança é bom porque sabe-se a cor
dos momentos de chorar.
Um dia eu tive vontade cristalina de chorar
(periquitos rachavam a tarde
no verde de seus hinos estridentes)
e não chorei: achei que não era hora.
Ser criança seria saber que hora de chorar
é quando se tem vontade cristalina
e eu choraria - rente da beleza ipês
daquela tristezinha.

8 de setembro de 2019

Naqueles dias

"Naquela época não havia rei em Israel; cada um fazia o que lhe parecia certo." - Juízes 17:6

Naqueles dias não havia
não havia rei em Israel
e cítaras não abriam
o caminho até o trono.

Das oliveiras secara o oleoso
verde, bálsamo ao lábio seco
e tal era a sede daquele povo
e tal seu sedento abandono
que bebiam curvados diante
dos anéis em dedos humanos
como que diante de dez fontes.

Naqueles dias a areia penetrava
os idôneos idílios que cantaram
um dia para o rei que amávamos.

Pois rei, rei em Israel, não havia.

Naqueles dias rei não havia
e cada qual dos súditos agia
conforme sua própria fome.

4 de setembro de 2019

Pássaros no céu

"Mas, para vós que temeis o meu nome, nascerá o sol da justiça, e salvação trará debaixo das suas asas." - Malaquias 4:2

Meu coração canta
a indizível alegria

- pois o Sol da Justiça
hasteou novos dias.

Já não há o não haver
nem haverá nostalgia.

Já não há o não haver
só há luz, água e vida.

Em vão discutíamos
mil séculos de poesia

- em vão invejávamos
os galhos da hierarquia.

Pois a carne se fez verso
e este verso nos habita

- já não há folhas de inveja
no canto das cotovias.

Meu coração canta belo
como nunca ele cantou!

Pois o Sol da Justiça veio
com suas asas de amor.

2 de setembro de 2019

Um jardim visto de dentro

para Michele Marcial, quando faz 2 anos que nos conhecemos

Ter um corpo, jardim
visto de dentro
é isso:

Se eu colho
a flor vermelha
além das grades
colho
o que não é meu

mas que passa a ser
para quem eu der.

Porque quem ama quer dar pétala
que materialize, aroma, o seu amor
- e ter corpo que não é para amor
é não ter, jardim visto de fora, corpo.

"Eu te amo", disse o homem
que morava na rua "eu te amo
e tudo o que tenho
- esta flor que acabei de roubar
e quem a roubou -
são teus".

30 de agosto de 2019

O vento antes da chuva

I
Acorde, vento norte! Venha, vento sul! Soprem em meu jardim, para que a sua fragrância se espalhe ao seu redor. Que o meu amado entre em seu jardim e saboreie os seus deliciosos frutos. – Cânticos 4:16

O melhor resumo
da expectativa que vivo
na vinda do meu noivo
é o raro vento fresco
nas dunas
o fresco vento que vem
antes da chuva

refrigério
habitual para mim
que sonho com sua lira

mas inédito
para esta areia antiga.

II
O meu amado falou e me disse: Levante-se, minha querida, minha bela, e venha comigo. – Cânticos 2:10

Nosso amor, nossos cabelos
no brancor do meu vestido
dançarão
perfume de água e terra
vento
antes da chuva.

III
És a fonte dos jardins, poço das águas vivas, que correm do Líbano! – Cânticos 4:15

Pois o meu amado
é esse hálito
que já estava comigo
à porta da casa
em que vivi criança
vendo
o céu nublar

a casa que hoje
mal recordo

oh céu distante

mas do vento
eu me lembro
antes da chuva.

26 de agosto de 2019

Seu Zé

O vento é tão forte em agosto
e tão de azul-pipas o seu dorso
que o hálito de quem morreu
corta ligeiro o frio do céu
e chega ainda morno
no colo de Deus.

Era por isso
que a menina ria.

Ela ria porque via
no coração da tarde
o seu avô pipa.

22 de agosto de 2019

A Grande Hora

"O que fizeste com meu Espírito?"
como um aroma a voz de Deus diz
para o poeta, diante do juízo.

"Isto"
responde-lhe o poeta
"isto".

E o fogo experimenta as obras
do poeta, suas paixões de outrora
experimenta a ira de sua lira
e queima tudo, que não é Glória.

"O que fizeste com meu Espírito?"
renova-se o cheiro da voz de Deus
no ar, para o poeta, que responde

"isto"
com voz sedenta de fontes
e diz "eu cri
no Cristo".

Resta, então, de sua obra
esse pequeno verso
de toda sua obra
só ele soa eterno
na boca do Espírito
após o fogo da Grande Hora.

16 de agosto de 2019

O medo da flor

"A relva murcha e cai a sua flor, quando o vento do Senhor sopra sobre eles; o povo não passa de relva." - Isaías 40:7

Medo, oh medo de esvair!
Onde encontrar claríssima
e imperturbável paz
consolo do jardim?

Nuvens circulam as torres
as portas, janelas, os homens.
Chuva em torno de mim.

Como os cavalos têm
o arreio entre os dentes
sonhei trazer a lua na boca
de minhas pétalas de marfim.

Mas rente às nuvens negras
sobre o dorso desse jardim
serei arrancada ou irrigada
quando essa tempestade cair?

5 de agosto de 2019

Os homens mordem o mundo
e dos lados de seus lábios
escorre o sumo dos modismos.

Pai, me ensina a ser eterno.

26 de julho de 2019

A estação fora do tempo

O tempo, com longos dedos,
agarrará firme qualquer face.

Virá dessa mão o beijo
que faz flácidas as fibras
até os íntimos detalhes.

Ele, como quem grita segredos,
avisa no trovão dessa tempestade
enquanto suas unhas abrem-se
em covas, lápides, caixas no chão.

O tempo, com longas mãos,
irrigará palidez sobre as faces.

O tempo, com brancas mãos,
supõe sujar de tempo
a eternidade
- mas não.

Pois, oh neve, para ti
Deus reservou o verão.

20 de julho de 2019

Lar e luz

Quando o amor de Deus
vem como chuva
Michele é meu açude.

Quando o amor de Deus
vem como vento
Michele é meu moinho.

Quando o amor de Deus
vem como noite
compreendo
o recolhimento proposto
e me volto ao colo
cabelos de Michele
- face castanha de um monte
anelado de ninhos
com cheiro de lar e luz.

1 de julho de 2019

Os que estão em solo já queimado

"Portanto, agora não há nenhuma condenação para os que estão em Cristo Jesus." -  Romanos 8:1

Quando um relâmpago vem à planície
de mato ocre e seco que há no coração
- e nela o raio abre as pétalas das chamas
brotando crepitar fúria e medo no dentro
do seu chão - há quem fuja contra o vento
correndo, correndo para o fogo lhe alcançar

ignorando que a justiça ígnea corre mais
que o homem, e que é grande o seu lagar.

Quando um relâmpago vem à planície
trazer sua justiça sobre a terra - e quando
o fogo alastra rítmico sua pureza sem ilhas
e com luz nas crinas, tudo janelas - alcançai
o chão preto que o calor fez do outrora mato!

Pois o fogo não tornará a queimar
os que estão em solo já queimado.

15 de junho de 2019

Os frutos de todos os pomares

"Porque isto é bom e agradável diante de Deus nosso Salvador, que quer que todos os homens se salvem, e venham ao conhecimento da verdade." - 1 Timóteo 2:3,4

Assim como o sol brilha
para justos e injustos
a água sacia
a sede de muitos: saciou o Nobre
à beira de um poço de Samaria
saciou eu, outrora sedento, que bebo
o suor de suas palavras matutinas.

Será que nossa vaidosa bondade
é maior do que a chuva que irriga
todas as herdades? Há quem diga
e sinta amar o assassino
de sua filha?

No entanto
grande é Aquele que sob e sobre
a totalidade dos prantos
faz crescer todos os pomares
e quer que todos se salvem.

Porque se há sol e chuva sobre justos
e sobre injustos
Ele pode fazer surgir de qualquer um
bons frutos.

2 de junho de 2019

Aos escarnecedores

Como o eco no útero dos túmulos
os risos de escárnio desse século
se acumulam. Riem da gordura
no olhar dos cegos. Riem da bondade
e sua arquitetura. Riem da luz
encouraçados de escuro. Paridas
da voz de ricos espúrios, enegrecem
fontes, as gargalhadas. Convertem
bosques em monturos. Besuntam
petróleo no branco das garças.
O ouro desta terra os faz rir. A
injustiça dessa terra os fez triunfar.
Mas tão certo quanto é bom o Senhor
o eco das hienas desse século
pro útero dos túmulos retornará.

25 de maio de 2019

O sono sob e sobre águas

"E eis que no mar se levantou uma tempestade, tão grande que o barco era coberto pelas ondas; ele, porém, estava dormindo." - Mateus 8:24

As línguas da chuva, estas colunas
de frio, abandono, fúria, a peneira
da chuva, chovia muito àquela altura
chovia muito sobre discípulos
e sobre o Justo, que ali dormia
no meio de injustos
que ele veio
justificar
ali dormia
um sono ensino
descansem tranquilos
irmãos pequeninos
um descanso sem sinos
e sem muros
eis aqui quem é
maior que o dilúvio

20 de maio de 2019

Quanta grande coisa esculpida
na força pequena de muitos dias!
Desenha na rocha a gota contínua
da paciência de Deus.

19 de maio de 2019

Diante do celeiro cheio

"Jó então se levantou, rasgou o manto e rapou a cabeça. Depois, caindo prosternado por terra, disse: Nu saí do ventre de minha mãe, nu voltarei. O Senhor deu, o Senhor tirou: bendito seja o nome do Senhor!" - Jó 1:20,21

Se houvesse menos que farelo
neste meu celeiro agora cheio
- deixaria o Senhor de ser bom
embora fosse má a nossa fome?

Vede: não é apenas na safra
verdejando os campos adiante
que Deus é bom. Quem sabe
se o tempo de fome não foi
um bom alimento? Quem sabe
se a fartura, naqueles dias,
não engordaria meu espírito?

Não uso o amor como escudo
apenas na fortuna, pois sei
da retidão do meu rei
- e arrastarei minha face
nas migalhas da fome ou
nos grãos da abundância
para agradecer.

12 de maio de 2019

Visão da tempestade no ninho

para minha mãe e para meu irmão

Após o quebrar da tempestade
só resiste o que há tempos
existe dentro da eternidade.

Meu irmão cuidou de minha mãe
nos dias de seu recolhimento
quando ao brincar com ele
ela quebrou os dedos - e eu
não estava lá, e nem estive
desde então
para vislumbrar o cuidado
novo e firme
do meu irmão.

O vento da tempestade
quando quebra o ninho
- e ao lançar ao solo
os pés quebrados
da mãe-pássaro -
também gera
a educação de cuidá-la
nos passarinhos?

Primeiro
a educação a partir do cuidado
e depois a educação por se tornar
o cuidador; primeiro
ouvir "amado", depois
agir como essência
de idêntico amor
e carinho.

11 de maio de 2019

Azeite e limão

A junção do morno escorrer
com acidulado verde gotejar
e na boca: um berço. Limão
azeite, doce azedo, temperos
com perfume de Jerusalém
onde mais o gosto-casamento
que tens de uma ária de Bach?

9 de maio de 2019

ignoronte

todo mundo não sabe
junto
mas fala como se soubesse
- em harmonia

circulam em torno disso uma seita
- e chamam a isso sabedoria

ignorância mesmo, pura
quem a tem
nem desconfia

7 de maio de 2019

A Vitória do Amor

Para Lourença, minha irmã

"E, quando Jesus tomou o vinagre, disse: Está consumado. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito." - João 19:30

Não há com o que se preocupar. O amor
não apenas vencerá: o Amor já venceu.

Por isso, ao olhar os arames farpados
trazendo em muitos restos abertos
as vísceras em fogo dos salvos
não descreiam deste reino.

Não há
com o que se preocupar.
O Amor já venceu.

Rememorem aquela nuvem túnica
estendida em lar sobre a areia
nos tempos em que ela ainda cobria
do morenor futuro as faces israelitas
e "assim como Moisés levantou
a serpente no deserto
desse mesmo modo é necessário
que o Filho do Homem seja levantado".

Desse modo foi feito.
Devemos, pois, fazer
da paz o nosso leito
embora os dias sejam negros
de um negror almiscarado
e os dentes desta noite sorriam
- não se turve a limpidez
de vosso espírito nem ouse
descrer do que venceu.

Pois o Amor
já venceu.

5 de maio de 2019

Amora

A Amora tem nome de fruto e é pequena
o que em si mesmo já vale
o azul da tarde - mas além disso
ela gosta de mim.
Ela anda
os passos de borboleta
a mãozinha gorda
procura a minha
pra atravessarmos a rua
"você gosta de auau?"
"eham!"
- no azul bem azul da tarde.

Às vezes
a gente acha que está
levando a afilhada
pra passear na praça
e na verdade está orando.

30 de abril de 2019

Poema

O cheiro bom da terra em torno do manjericão
me faz pensar em Deus, e o cheiro das colinas
que imagino e quase não vejo. A luz aberta
no coração da manhã me faz pensar em Deus
e a luz diluindo a antiguidade do mofo, esta
luz na presente tarde faz pensar em Deus
- não faz? Na espessura do café fluindo
na memória boa de uma boca que sorri
penso em Deus - e quando vejo as nuvens
após o trabalho recém exercido
com os músculos cansados durante o suor
após a noite - e com a noite - Nele penso.
Não sendo viável entendê-lo com os dedos
eu entendo do meu jeito: no cheiro da terra
em torno do manjericão
no cheiro das colinas
que imagino
quase não vendo.

27 de abril de 2019

A sinceridade é uma coisa boa porque nela jogamos sob a mesma regra, a da realidade, enquanto que para mentir há muitos tabuleiros diferentes. O jogo segue, de qualquer modo. Vence quem conceber o xadrez mais inédito? "Eu encurralei seu rei, venci", diz o sincero de qualquer época. "Mas, no meu jogo, vence quem tem o rei derrotado", responde o homem do presente século.

21 de abril de 2019

Um outro domingo

Essa erva crescendo nas vigas sulcadas
do ódio amargo destes tempos inglórios
- e esta ferrugem nessa faca
a romper as fibras do córdis.

Meu Pai, como amar meu inimigo?

Como amar esse imenso domingo
que devora o descanso de outrora?

As vigas apodrecidas são meu corpo
a suster meu amor frágil de pecador.
E a faca é esta vida, contida no bojo
do antigo nojo que corta o que sou.

Mensageiro, meu irmão: pegue
a tua trombeta e anuncie a ode
que meus inimigos aguardam...
Que eles rodeiem as muralhas
e que riam, porque me rendo.

Pai, oh prece de incenso,
como amar meu inimigo?
Entregando-me sozinho?

Não.

Entregando-me contigo
como Teu Filho
a nós Se entregou.

19 de abril de 2019

Lá e aqui

Por tédio da minha própria vaidade
deixei que meus ouvidos abarcassem
o que diziam de mim, em Valentim.

Eu queria ser como o louco que bebe
comum à toda cidade
ou o como aquele
que dá medo nas crianças
mas uma versão que escreve poemas
desses loucos
e sem dar medo nas crianças
eu queria ser o poeta louco da cidade
e que quando precisassem de alguém
para opinar sobre a simetria das folhas
verdes dentro do plano geral de Deus
viessem falar comigo
quando precisassem de alguém
pra mostrar a beleza das nuvens
responsabilizassem meus olhos
pela resposta.

Por tédio da minha própria vaidade
deixei que meus ouvidos abarcassem
o que diziam de mim, lá e aqui.

E não era
o que sou
o que viam em mim.

Por tédio da minha própria vaidade
deixei que meu coração ancorasse
essa preocupação naquele tempo.

E perguntei:
não me veem!
E respondi:
mas
o que eu mesmo
vejo?

18 de abril de 2019

Abril, meu bem

para Michele Marcial

Abril é isso: a manhã
feita meu bem. Abril:
abrem-se dos bosques
a fundação das pétalas
e para Deus cantam
sobretudo os mudos
o canto sorrindo tudo
que em abril
canta-se muito.

Abril, isso sendo:
do aniversário dela
relembra-se o mundo?

Se não o mundo
ao menos os olhos
sob meus cílios.

Se não o mundo
ao menos abril:
o orvalho da manhã
que do aroma da maçã
no olhar dela caiu.

16 de abril de 2019

A percepção ondas

"Ele fez tudo apropriado ao seu tempo. Também colocou no coração do homem o desejo profundo pela eternidade; contudo, o ser humano não consegue perceber completamente o que Deus realizou." - Eclesiastes 3:11

Se meu corpo gastar sob um rio
as searas de uma tarde, à noite
meus músculos irão ondular
como se ainda sob águas
dançassem.

Assim também é com o coração
se antes das searas de uma vida
foi mergulhado em vossa água:
vindo a noite, ondulará a luz
de sua memória eternidade.

6 de abril de 2019

Senhor, protegei os poetas
estes olhos tão sem norte
atormentados pelos sons
abrindo contínuos cortes
amolecendo nosso chão
Senhor, protegei os poetas
nossa tolice de muitos sinos
e coração de muitas portas
abrindo para labirintos hirtos
esculpidos no haver trovas
Senhor, protegei os poetas
cinge-nos brasa na garganta
rouca dessa torpe arquitetura
fazei de nossa insânia dura
alguma ode santa

28 de março de 2019

A tarde e a manhã, o dia sexto

"E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom; e foi a tarde e a manhã, o dia sexto." - Gênesis 1:31

É bom o arredondar da mão
para colher o fruto maduro
bem como o comer nacos
frescos de pão após chover.

Os olhos se arredondam
para colher na paisagem
as serras molhadas e
mais azuladas
conforme mais distantes.

E isso tudo é bom.

A boca reproduz os vales
com os animais pequenos
e o luar de logo mais
no dorso do lago
- o gosto do pão sendo
a imagem do rosto amado.

Feliz o que se senta
diante
e contempla.

Feliz o que sabe
ser bom o simples
saber: "isto é bom".

Ter o entusiamo
do sol ainda quente de berço
mesmo depois de tantas
manhãs colhidas.

26 de março de 2019

Canção do ar amado

para Michele

O hálito da minha menina
é um cafezal de flores
circulando a campina
verde daquelas noites
- naquelas noites tão dia
como, se dia sendo, fosse.

Será seu hálito o cacheado
morno das vinhas? Ou seria
só meu olfato o pouso doce
pro seu ar amado de relvinha?

O hálito da minha menina
é uma delicadeza de cores
circulando a campina
verde daquelas noites
- naquelas noites tão dia
como, se dia sendo, fosse
ela.

25 de março de 2019

Senhor, Senhor, não enxugai

"Essa esperança é para nós como âncora da alma, firme e segura, a qual tem pleno acesso ao santuário interior, por trás do véu" - Hebreus 6:19

Senhor, Senhor, não enxugai
todas as minhas lágrimas
deixai que algumas evaporem
no hálito de existirem dias
e na garoa de haver noites
se esta for
a Vossa vontade, Senhor
pois há um choro
que guardo para o Teu dia
e aquele de glória lapida-se
nestes de serena alegria
um choro
que só ousa chorar
o pequeno barco
que se tivesse âncora
afundaria
e por isso é ancorado
por Deus
e que ainda chora
em pensar na maior beleza
com a mágoa de não sê-la
ainda, esse choro suave
em haver Beleza
e não sê-la
ainda.

14 de março de 2019

Do fogo uma voz mansa

"E depois do terremoto um fogo; porém também o Senhor não estava no fogo; e depois do fogo uma voz mansa e delicada." 1 Reis 19:12

Quem leva a chama pequena
na branca flecha da vela
um incêndio possível
em Si sempre carrega

Pois não basta uma pétala
da rubra flor deste fogo
tocar no álcool dos dias
para abrir-se em ouro?

No entanto Quem carrega
esta chama pequena que sou
floresce uma delicadeza
paterna de terra e avô

Pois de Sua boca partindo
o forte sopro que ara
a vida do próprio fogo
no sol de todas as lavas

É com voz mansa e delicada
que agradou ao meu Senhor
incentivar a pequena chama
que por enquanto agora sou

É com voz mansa e delicada
após o fogo e após o tremor
que ele aninha a miúda chama
que por enquanto agora sou

10 de março de 2019

Todas estas coisas

"De fato, a piedade com contentamento é grande fonte de lucro, pois nada trouxemos para este mundo e dele nada podemos levar; por isso, tendo o que comer e com que vestir-nos, estejamos com isso satisfeitos." - 1 Timóteo 6:6-8

A pele fina pede tecido
que lhe cubra do vento
- e da fome larga e da sina
constante no pedir alimento
a boca o que mastigue
anseia embalsamar dentro
com saliva e com salitre
não apenas o necessário
e trivial, mas o suculento!

A vaidade, pois, alarga
a riqueza dos pedidos
que o corpo lhe faça
firme com as facas
dos seus sentidos
e há quem torne
esta praga
em abrigo.

Amigo, inimigo
não sigamos
este caminho!

Estejamos satisfeitos.

Atentemo-nos a isso:
estar satisfeito
é a única liberdade
possível.

12 de fevereiro de 2019

Lugares solitários e orava

1.
Mas Jesus retirava-se para lugares solitários e orava. - Lucas 5:16

A sabedoria jaz no silêncio
mesmo neste século violento.

Dentro de uma boca pálida
jaz seu suave recolhimento
de jardim suave que abraça
o hálito de quem ora dentro.

2.
E, havendo aberto o sétimo selo, fez-se silêncio no céu quase por meia hora. - Apocalipse 8:1

Assim a sabedoria se fez intacta
do nenhum silêncio deste tempo
cujo profetizado apodrecimento
aponta as campinas mais sábias

(mesmo neste século barulhento)
do após tudo de um novo silêncio.

5 de fevereiro de 2019

Esta lã de sal

"Ide; eis que vos envio como cordeiros para o meio de lobos." - Lucas 10:3

O sal da terra, este selo
fluindo de olhos rasos
às margens do peito

sela de coragem o hiato
que engendrava cansaço
nos tímidos cordeiros.

Cada gota então brilha
como uma flor de suor
novíssima maravilha

mesmo se a pele soa
o som do açoite, noite
e masmorra adentro.

29 de janeiro de 2019

Se o mundo me chamar de pássaro

"Pois que aproveitaria ao homem ganhar todo o mundo e perder a sua alma?" - Marcos 8:36 

Se o mundo me chamar de pássaro
pintando azul as imaginárias asas
que a vaidade há muito já pintava

saberei que a mão do mundo é laço
querendo agarrar o orgulhoso voo
de quem acredite em seus aplausos.

Cuidado! Não é bom seguir crendo
que estes risonhos sons de cascos
bravios, sobre o rio, sejam elogios!

O louvor do mundo é um fermento.
É o peso que dilata, quente e exato,
a ilusória glória das asas de cimento.

25 de janeiro de 2019

40 anos de deserto

Oh, exílio! Julgas
que me fará chorar?
Eis vossa boca
eis o meu riso
julgas
que guardo sorrisos
apenas para meu lar?

O sol também nasce aqui
(embora menor)
onde não nasci

4 de janeiro de 2019

Situação

para Lucas Romano

Há os construtores de monumento
empilhando bronze, aço, cimento
em estilhaços sisudos de passado.

Eu escrevo.

Há também os chamados padeiros
que do fogo fome fazem o cheiro
a abrir manhãs com seu mormaço.

Eu escrevo.

Se a obra de um está pelas praças
e se pão fica bom com cachaça
eu escrevo. Que culpa tenho?

3 de janeiro de 2019

Minha arrogância: uma justificativa?

A abertura nesta pedra de vaidade
limada e verde, chamada coração,
é um cano para escoar a barbárie
para manter a mínima distinção.

Conforme, porém, o cano cresce
em seu núcleo a oca inexistência
(porque a barbárie também cresce
onde antes não havia sua essência)

nasce a arrogância, este parecer
maior, por ser menor: o coração.
Levantar o nariz então passa a ser
para não sentir o fedor do coração.