21 de dezembro de 2021

O jardim da circunstância

Eu não escolhi a minha cor
o país em que nasci não escolhi
meu coração à poesia, essa vontade
de ver o mundo desmanchar-se
e ser refeito
eu não escolhi a poesia
como estandarte furioso
mas ei-la aqui crepitando
fogo
enquanto tremula ao vento
eu não escolhi o meu coração
mas alegro-me em havê-lo
um grande jardim de árvores
fogo
devoradas pelas águas
tempestadas do tempo

30 de novembro de 2021

Alagoas

Graças a Deus
pela saúde dos areais
e pela água quente
Graças a Deus
pela alegria do vento vindo
dançar os cabelos da gente
Graças a Deus
por esses muitos
verdes entres
Graças a Deus
pelo frescor
dos coqueirais
pelo mar, amor
e tudo mais

10 de novembro de 2021

O verão amendoado de novembro

Os olhos castanhos da minha esposa
dourados
pelo verão amendoado de novembro
são os frutos maduros da alegria
enfim em um galho à altura da mão.

Deus meu, Deus meu
 - eu bem merecia
mas não me abandonastes
à safra da minha própria loucura.

A tarde nasce em nuvens lindas
e chuva ainda quente de sol.

Por estar enfim feliz, enfim
até escrevo menos poemas
- mas vivo-os cada vez mais.

24 de outubro de 2021

O Manual da Dona Iza

para Bruno e Dona Iza, daqui https://www.instagram.com/tv/CVbRPPlrXIm/

"Me dá meus olhos" disse a mãe
que me ensinou a ver. 

O olhar da memória é estar presente.
O coração da vida é a memória.

Não.

O coração da vida é o amor.

19 de outubro de 2021

Canção sem sede

Depois da tempestade, a flor de goiaba
- no coração verde da tarde
o jardim nos olhos da amada

Depois da tempestade, a flor de goiaba
- o enigma difícil da seca
resolvido na seda das águas

Depois da tempestade, a flor de goiaba
- o sorriso que morde sem dentes
o fruto da esperança hidratada

Depois da tempestade
vocês sabem
a flor de goiaba
- e é bom que haja sede
para então saciá-la.

28 de setembro de 2021

Deus, ao contrário dos homens

Deus, ao contrário dos homens,
vê todos as faces da montanha
ao mesmo tempo
Deus vê todas as montanhas
Deus vê o vento

Então
quando alguém com os pulmões
tumorados de morte
e o coração nublado de loucura
pergunta colérico onde está Deus
Deus pode vê-lo, vê-lo
no jardim futuro que se chama eterno
sua conversão à paz Deus vê
nas lágrimas da dor presente
a alegria das lágrimas futuras

Deus, ao contrário dos homens,
vê todas as faces da montanha
ao mesmo tempo
Deus vê todas as montanhas
Deus vê o vento
e nos vê

5 de setembro de 2021

O jardineiro da estiagem

Se as flores tornam-se consolo
para quem espera pelos frutos
a fome é saciada pela cor
desse aroma já maduro?

O esfomeado que olha
pelas grades entre os muros
o banquete dos galhos fartos
deixa de ter fome
se olhar muito?

As flores apenas saciam
quem já não precisa dos frutos?

A beleza é para o faminto
o que a piada é para o luto?

20 de agosto de 2021

O absoluto silêncio de ter morrido

"Não, vos digo; antes, se não vos arrependerdes, todos de igual modo perecereis." - Lucas 13:5

O absoluto silêncio de ter morrido
não existe - é ruidoso não existir mais
se inferno e eternamente em desabrigo.

A memória embora grite nos que ficam
não é esse o seu vermelho pior bramido
se no inferno interno daquele que morre
há a inquietude do sal no corte, isto é:

se houver audível insuportável o grito
do que se indigna depois da morte
e não se arrependeu estando vivo.

23 de julho de 2021

3 meses, Michele e eu

Hoje fazemos 3 meses de casamento!

Hoje (faz 3 meses) comemoramos
haver na aliança de ouro no dedo
o símbolo da unidade que há dentro.

Hoje fazemos 3 meses de casamento!

Mas a aliança cotidiana que plantamos
estamos comemorando há mais tempo
- esta aliança alegre que cuidamos
para todo dia dela ainda colhermos
do amor de Deus o nosso alimento.

16 de julho de 2021

O exilado

Porque nasci durante os dias de exílio
não conheço a terra de que me exilaram.

Mas então
sob o inverno
fui de fato exilado?

De lá, dizem-me, eu trouxe a seriedade
que tenho escavada na pedra do coração.

De lá conheço o rio
manso e limpo de águas
que nasce, dizem-me, onde não nasci
para irrigar aqui a ilha de maçãs
do rei, no seu jardim.

Daquela terra eu vi o olhar
castanho da minha esposa
mel e resina nas árvores douradas
quando o sol abre as castanhas
entre a folhagem.

Porque nasci nos dias de exílio
não sei a terra de que me exilaram
mas conheço minha mãe
seu carinho bordado
e meu pai ausente
conheço a violência presente
do meu pai ausente
conheço a ira, o vento, o vinho
e o canto dos pássaros.

E, sob o inverno, me conheço o suficiente
para distinguir que não sou daqui
como estes pássaros.

24 de junho de 2021

O Van Gogh

Meu amor, veja este amarelo
eu enlouqueci os pássaros
ainda molhados de orvalho
veja este azul, as ondas
do seu cabelo, o seu olhar
eu enlouqueci a boca desta árvore
estes ventos, este frio
a arte dói tanto, amor, ser sensível
até às vísceras, as montanhas
são tão lindas no teu jeito
de ter pena de mim
à noite
meu amor, veja este amarelo
eu enlouqueci o sol, eu enlouqueci
a minha infância triste, tão feliz
tão verde celeste
a baba do amor como o sumo de um fruto
entre jasmins
eu pintei a morte nos últimos dias
ante a nossa iminente eternidade juntos
guardei na minha loucura o amor
escuro o amor que em você amei
eu pintei a derrota dos últimos dias
ante a nossa imediata
vitoriosa, amarela
dourada
eternidade juntos
como quem enfim encontra
da cor o tom que buscava há muito

5 de junho de 2021

O otimista

"Passará o céu e a terra, mas as minhas palavras não hão de passar." - Lucas 21:33

Tudo passa, dizem as nuvens
sombras sobre a minha carcaça
tudo passa, dizem os olhos
sérios do tempo, cegos
com suas faces enrugadas

Tudo (na lápide do amigo
há limo no ouro da data) passa
heroísmo, fama e reinos
o beijo lento acaba, o medo
perde o sentido
na rapidez das águas

Tudo passa, diz o vento
correndo as folhas mortas
na escada
tudo perde o calor
perde o viço
dentro
perde a umidade da coisa amada
mesmo a flor que te dei, amor,
morrerá, mesmo a flor
com suas pétalas de asas
- mas o Amor
oh amor
nunca acaba

26 de maio de 2021

O Desconstrucionista

Primeiro, me provaram que não sou macho nem fêmea.

Depois, vieram e rasgaram com uma faca sublime o núcleo da minha visão; disseram estar tirando as escamas dos meus olhos. Me provaram que o sol (eu já o não via) não existia e provaram que a boa brisa sobre a pele era a ilusão fascista dos meus sentidos.

Provaram que minha família (meus irmãos, minha mãe) eram estruturas de poder a demolir na minha consciência inferior; seu cão é seu único companheiro, disseram, e me chamaram pai de pet.

Os professores, disseram, são estes que detêm autoridade sobre a vossa moleira rosada: mate a todos!, eles disseram.

Tudo é arte, tudo é cultura, gritaram, arremessando o estrume basilar que fazia parte da melhor escultura do melhor escultor do nosso tempo.

Depois me convenceram a comprar suas aulas, seus discos, seus ritos.

Hoje já está mais do que provado que não existo.

6 de maio de 2021

O testamento

Deixo tudo às palavras, estas
pelas quais agora mesmo
passo os olhos dos meus dedos
orvalho, raízes, vinho
tempestades
estas palavras e todas as que conheço
serviram para dizer o amor
que impossivelmente distingue-se
em palavras
nos muros das casas
nos dentes cerrados da morte
como cercas
as palavras, estas
pelas quais menti ao mundo
e tentei mentir a Deus
palavras, orgulho
doença, ouro, navalha
iconoclastia, harpas
que usaram-me enquanto as uso
no impossível permanecer
mudo
as vagens das palavras
sua armadura, suas asas
seu rosto febril de nojo
sua loucura calada
e o contorno morno do sonho
o perdido contorno do sonho
naufragado em larvas

Há palavras tão lindas
e o amor
esta palavra que não é linda
é maior do que todas elas
tudo deixo à palavra amor
tudo
e às outras palavras

26 de abril de 2021

Prosa

O senhor veja: a canção é esta: Deus existe
as árvores são verdes, o rio não passa
das margens do seu ser rio
a não ser na cheia
aquele lamaçal. O senhor veja:
os cachos do amor ainda amadurecem
mesmo nos tempos da maior doença
os lírios do testemunho ainda brotam
os olhos enamorados da ternura
castanhos, dourados, vitoriosa
a boca sorrindo gostoso do dia.
Um cachorro, o senhor sabe, sabe
ser companheiro - talvez porque não fale?
O senhor veja: a canção é esta: as árvores
ainda germinam vivas por baixo do lamaçal
e Deus existe, o senhor veja.

18 de abril de 2021

Cenário aniversário

Para Michele

Dos teus olhos a luz dourada do entardecer
fluía, amor, luzia a fonte alegre do dia
que é você
e as flores que você colocou sobre o bolo
de limão siciliano e morango
pintavam o contorno pomar do seu sorriso
e quarava sob o sol do seu coração
as folhas viçosas do nosso casamento
um ribeiro de água fresca.

11 de abril de 2021

Quem deseja vender a sua alma

Quem deseja vender a sua alma
(este pomo dos últimos tempos)
não precisa fazer mais nada.

A disposição em fazê-lo
já assinou o contrato com
o selo do próprio desejo.

2 de abril de 2021

O cenário outono

A cortina é a túnica
para o corpo do vento
quando abril vem vindo
com seu hálito de beijo
e suas tranças de folhas
invadir a casa
do pensamento

O frescor antigo
deste novo alento
sabe encher-nos
de alívio a pele
sabe dissipar a febre
e perfumar de sonho
o cenário outono
que temos dentro

28 de março de 2021

Domingo de ramos

Vem
vem, ó Jerusalém
escolhamos as mais belas folhas
para louvar aquele que em breve assassinaremos
e passemos sobre ele o contorno verde das folhas
sobre sua cabeça que em breve rasgaremos
na ponta de espinhos
igualmente escolhidos

Vem
construamos catedrais
façamos para nós líderes sacerdotais que dominem
sobre nossos filhos
e roubem de nós a gordura de nossos animais
deem ao ourives de todo fogo
o projeto dessa coroa
com joias da inquisição
e arquitetemos líderes
que difamem o nome do Senhor
em seus atos

Louvemos, louvemos
aquele que odiamos
por evidenciar em nós
a bondade que não temos

Que verdes ramos são, ó Jerusalém
fazer para Deus aquilo que Deus não pediu
que belos são, ó Laodiceia
estes espinhos futuros

7 de março de 2021

O condenado

Enquanto eu aguardava o golpe dos que me degolariam
o céu era azul, o vento era março
e o meu coração era a flor do contentamento
em haver beleza
no canto dos pássaros
nas lágrimas daquela que chorava por mim.

Antes que a lâmina descansasse sua fúria
em minha carne
agradeci por ter olhos, por ter pele
e vi o céu que era azul
obrigado, Senhor, eu pensei
e senti o vento que era março
e ouvi o canto dos pássaros
nas lágrimas daquela que chorava por mim
Deus é bom, de fato
Deus é bom.

14 de fevereiro de 2021

O moribundo

"O último inimigo a ser destruído é a morte." - 1 Coríntios 15:26

Enquanto a dor rasga meus músculos 
como pedras que cortam o cosmos
contemplei, oh morte
a tua escuridão.

Com olhos inutilmente abertos
apalpei teu olhar desfeito
apalpei meus ódios
e segredos
enquanto a ferrugem do rancor
mutilava
a escondida lâmina
do meu amor.

Por muito tempo, oh corpo
te julguei inútil
porque teu fim
me doía.

Mas não sei amar
meus irmãos
sem você, corpo meu.

Não sei cantar
a Deus
sem você.

Eu não sabia
que não és mau
embora de ti a dor me brote
cicatrizes
com suas raízes de câncer.

Embora, corpo, seja feia
a condição em que estás
tua beleza canta
- com a boca ferida
da maior sede
mas o coração ferido
da maior esperança.

20 de janeiro de 2021

O debatedor

Amplos eram os salões de debate
que frequentei, querendo agradar
o desprezo de opiniões sem asas
que voavam aos milhares, aves
espalhando o hálito amargo
dos debatedores meus pares.

Amplos eram, não sei se ainda
o são
os salões que eu frequentava
até que resolvi sair
ao colo dos campos
e encontrar
o reflexo do meu rosto
nas poças após a chuva
de verão.

13 de janeiro de 2021

Canção de tempo e vaidade

O tempo é a vitória
sobre toda vaidade.

A beleza e sua glória
a riqueza e suas grades
o tempo estraçalha
e vence
como se colhesse
uma cidade.

O tempo é a vitória
sobre toda vaidade.

O tempo é a memória
de rejuntar escombros
peneirar escórias
pra erigir da ferrugem
a sua joia de mofo
incrustrada na coroa
da História.

Quem de nós
não tombará diante
da cavalaria das horas?

Quem
em qual instante
ousará reerguer
do ventre cobre
as suas modas?

O tempo é vitorioso
e é algo que consola.

Porque o soberbo
se perde em seu seio
onde morre seu viço
e vanglória.

Só restará eternidade
nesta fogueira paciente
que temporalmente
devora.

1 de janeiro de 2021