30 de outubro de 2018

A Hora Sexta

"E era já quase a hora sexta, e houve trevas em toda a terra até à hora nona, escurecendo-se o sol; E rasgou-se ao meio o véu do templo." - Lucas 23:44,45

Cada tempo pede a sua espada
que de espinhos cresça da aljava
seu corte contra o norte de amarras.

Cada tempo, sim, guarda sob capas
a fera a ser rasgada pelo ferro, afiado
em seu próprio tempo o corte cascatas.

Mas de todas as capas, de todos os véus
havia o maior, separando homem e Deus
e a espada que o rompeu, amarga lâmina
luz, tinha seu punhal em forma de cruz.

Cada tempo tinha, terá, teve, mas houve
aquele que por amor a todos os tempos
sentiu os cortes do céu, espada
ele mesmo, ele mesmo o fio
da lâmina contra o véu judeu
nas milenares horas de breu.

22 de outubro de 2018

O Profeta - Alexander Pushkin

Num ermo, eu de âmago sedento
já me arrastava e, frente a mim,
surgiu com seis asas ao vento,
na encruzilhada, um serafim;
ele me abriu, com dedos vagos
qual sono, os olhos que, pressagos,
tudo abarcaram com presteza
que nem olhar de águia surpresa;
ele tocou-me cada ouvido
e ambos se encheram de alarido:
ouvi mover-se o firmamento,
anjos cruzando o céu, rasteiras
criaturas sob o mar e o lento
crescer, no vale, das videiras.
Junto a meus lábios, rasgou minha
língua arrogante, que não tinha,
salvo enganar, qualquer intuito,
da boca fria onde, depois,
com mão sangrenta ele me pôs
um aguilhão de ofídio arguto.
Vibrando o gládio com porfia,
tirou-me o coração do peito
e colocou carvão que ardia
dentro do meu tórax desfeito.
Jazendo eu hirto no deserto,
o Senhor disse-me: “Olho aberto,
de pé, profeta e, com teu verbo,
cruzando as terras, os oceanos,
cheio do meu afã soberbo,
inflama os corações humanos!”

poema de 1826, tradução de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher

18 de outubro de 2018

O poetinha cansado

Seus olhos, seus olhos
são tão bonitos! Quão
difícil é dizer só isso
depois de tantos livros...
E vê-los por mim mesmo
sem enxugar a imagem
do negror de seus cabelos
na imagem fosca e boba
da poesia de outros tempos!

Seus olhos, seus olhos
são tão bonitos! E bom
é ter olhos para
por mim mesmo
livre de livros
vê-los.

15 de outubro de 2018

Morphine

O sopro no sax rasga
a noite e faz com que
do negro ventre aberto
com esse cetro
escorra a chuva branca
longa barba de estrelas
gotas de tristeza estética
antiga
esférica perfeita pérola
aos porcos

11 de outubro de 2018

Feriado na roça

para Michele Marcial

Quando te busco na cidade, amor, na cidade
que de mastigar meu coração o fez crescer
é fácil reconhecer a tua face doce
entre a multidão de faces
homogêneas pela amargura
e te distingo, amor, com a facilidade
solene e clara com que Deus conhece
a cada um de nós
porém
quando mesclas
a tua substância bela de ser nas manhãs
e aos campos retiras o teu olhar melancólico
naturalmente o teu olhar bom
eu confundo a tua sombra com o hálito
morno dos cafezais florindo
eu confundo o toque fino do orvalho
com o teu sorriso
e é grande, grande
a confusão dos sentidos.

1 de outubro de 2018

"E ele estava na popa, dormindo sobre uma almofada, e despertaram-no, dizendo-lhe: Mestre, não se te dá que pereçamos? E ele, despertando, repreendeu o vento, e disse ao mar: Cala-te, aquieta-te. E o vento se aquietou, e houve grande bonança." - Marcos 4:38,39

Sejamos delicados, apenas delicados, pois
a planície é mansa no aninhar furioso
do raio
e o rio
aceita sem cólera o tropel muito
disforme da travessia do gado
mesmo que ele se pareça bravio
quando suas águas se turvam
de barro

Sejamos menos o raio, delicados
como a nuvem é delicada
no chuvisco sobre a casa
quase barcos
no leito calmo
assim sendo, mesmo cordeiros,
menos boiada, sim, sejamos isso
barcos cansados! que sobre
Água Viva habitam
e que tranquilos chamam
de banho
a pior das tempestades