31 de março de 2018

Ressurreição

O breu em nós não compreendia
a vinda da luz pela voz do Verbo
nem compreendíamos o deserto
erigido pelo Leão que ruge o dia
tal qual o negror em nós não via
o véu que se rasga no furor certo
- nós não tínhamos olhos quietos
o suficiente para ver Quem rugia!

Então houve o retorno que recria.
Então compreendemos nosso elo

da cruz central ao ver o ressurecto
no trinitário sorriso do terceiro dia.

29 de março de 2018

Bodas de ouro

Quando o nosso primogênito morreu
mal tive tempo de me atentar na dor.
Havia um êxodo no teu olhar áureo
no teu olhar de lar um exílio cursou.
Nas chamas sem movimento idólatra
da tristeza o fogo forte fazia réquiem.
Tuas ruínas exigiam a minha força e
ali, embora igual ruína, eu não chorei.

Quando o câncer me tomou a carne
mal tive tempo de me atentar na dor.
Havia no teu cuidado o que cuidasse
em mim a dor que não te abandonou.
Como quem alisa o ferimento alheio
e de cuidar o outro a si unge coragem
tua força ungiu a ruína no meu seio e
ali, embora sem esta força, não chorei.

50 anos. Mais dias sendo com você
do que sendo sozinho o que eu sou.
Não erigido nos tempos de prazer.
Um amor fundado nos dias de dor.

21 de março de 2018

Fábula

é preciso conviver
com o mel
e com o ferrão

(ouviu-se
sem que ninguém
dissesse)
 
pois o outono começou
 
(mas o sol no lodo
verde tigre amando
o alaranjado marrom
disse)
 
ainda não

20 de março de 2018

O outro malfeitor

"Respondendo, porém, o outro, repreendia-o, dizendo: Tu nem ainda temes a Deus, estando na mesma condenação? E nós, na verdade, com justiça, porque recebemos o que os nossos feitos mereciam; mas este nenhum mal fez. E disse a Jesus: Senhor, lembra-te de mim, quando entrares no teu reino." - Lucas 23:40-42

Não porque o sangue que despejei criou
uma nova pureza: de tal limpeza
só um sangue é capaz. Não porque
em um dia de paz sob céu ainda pequeno
menino corri, desconhecendo ali o epíteto
luzidio que teu olhar traz. Lembra de mim,
Jesus, quando retornar ao teu reino
após estes danos que não mais temo
lembra de mim apenas porque o amo
oh sol rasgando o pano do eclipse denso
porque eu o amo mas não o mereço.

17 de março de 2018

Talvez melhor habitar a guerra
com seus crepúsculos cruéis
cravejados de heroicas odes
do que este século perverso
ornado por latrocínios
que também pode
me enlouquecer

Talvez melhor ter
em outra trincheira
a face opaca dos inimigos
do que habitar entre eles
e não distinguir aliados

Ao menos tenho a poesia
(nela porventura habito)
e quem não tem nem isso?

Perfil

Prata límpida magoada de brejo é
o reflexo lunar no lago e nos olhos
o furor de dois touros (lago e olhar)
o furor adolescente do muito sofrer
crescendo como costelas no dorso
ao norte

Ela vem e lapida uma febre
de castelos escurecidos pelas guerras
ela vem e morde as libélulas restantes
na casa incinera a música no ar ela
(a pobreza) com malícia leonina os
calçados usados sob as barbas do dia

Eu sou um poeta pobre muito pobre
e mais do que de vossos aplausos
preciso pagar o aluguel pois a voz
extravagante que lhes trago só pede
que me paguem algo pelo itinerário
que vos descrevo

Me deem
algum dinheiro

10 de março de 2018

Relatório do protetor

O poeta passou o dia com sua musa. Riu, comeu, dormiu bem. Mas o poeta estava preocupado. Comeram goiaba de um pé, pé de goiaba branca, depois de outro pé, de outra cor, comeram goiaba. Hoje foi um dos dias mais felizes da até aqui curta vida do poeta. Ele, em muitos relances, sonhou com o colo de Você como algo muito assim o dia de hoje. Mas o poeta estava preocupado. "Em alguns meses, em alguns meses", ele pensou continuamente. E tentou não lembrar do despejo, do não poder pagar o aluguel. Fez sopa, a musa trouxe bolo. Enquanto a chuva os rodeava, o poeta jogava vídeo-game com a musa. Jogaram vôlei e basquete, após. Preocupadíssimo. "Os lírios do campo", ele buscava se dizer, e fracassava, e Lhe atribuía a covardia dele, e ansiava paz. A musa, porém, o envolvia a cada tremer de pálpebras, e o beijava, delicada. Um templo. Acaso foi o SENHOR quem a enviou também? 

9 de março de 2018

Para o deserto da multidão

Ainda
que eu falasse a língua dos homens
falasse a língua dos anjos e o amor
em volteios nascesse no meu hálito
como circulando um templo vocês
nada ouviriam

Ainda
minha língua fosse de Adonai o fogo
renovante no núcleo dos relâmpagos
som feroz que mesmo assim pousasse
leve nas aves uma piedade pura vocês
nada ouviriam

Ainda mais não tendo nada disso
ainda mais sendo isto o que sou

4 de março de 2018

Cordilheiral

Quando um amigo chora
quero fazer nos meus ombros
o acréscimo
da extensão nas cordilheiras

(para que a tempestade nele
repouse com conforto tamanho
e se ajuste ao pesar)

Quando um amigo chora
quero fazer neste meu peito
um adendo
a outro coração que doa

(para que a tempestade nele
confunda as vazantes do coração
entre doação dor e lamaçal)

Quando um amigo chora
quero a morte do tempo
para que ele chore chore chore
e não pense na hora mas

eu dou apenas a ele
o silêncio que me foi dado
o silêncio atento e calmo
(e oro para que ela unguente a tristeza
sagrada do amigo
em améns)
Um dia nós seremos os antigos
- os mortos sob o piso há séculos -
e será no percorrer dos nossos anos
que os vivos buscarão algum sentido.

No traço deixado por nossos remos
buscarão rumos, sem encontrar
leste para suas velas, tesouros,
só avistando este mar e dizendo
"eram tolos", com os lábios secos,
"tolos como somos e como seremos".

Nos campos que habitávamos
pensarão que o broto se fez tronco
e que, após morto, alimentou frutos
pois de si fez nutrir bom adubo.
Mas também nos campos nada haverá
e os vivos dirão "eram tolos"
com fome mas agora serenos
- sábios pelo nosso mau exemplo?

Tomara que na escassez futura
eles plantem e se façam menos tolos
do que somos, do que seremos.