20 de novembro de 2024

Sol e tempestade

Embora seja um amor que possa ofender a muitos, eu amo o verão.

Chove, faz sol, venta, faz calor e suor. As mangueiras, também, cheias de frutos.

Talvez pensando nisso, acabo de publicar "Sol e tempestade" - o livro que resume os meus trinta verões, que em breves três dias espero completar.

Este meu sexto livro publicado, em suas mais de quatrocentas páginas, é dividido em seis partes.

"Viola dos 30 Anos" é feito de poemas.

"Para Michele" reúne textos dedicados à minha esposa.

"Pés de Bronze, Voz de Águas" traz ensaios sobre a Bíblia.

"Prosas Gerais" é feito de (quem diria) textos soltos em prosa.

"O Século dos Invejados" é o meu livro de Filosofia publicado originalmente em 2023.

Para encerrar, "Fragmentos do Templário" traz um romance inacabado.

O link para aquisição está a seguir: Sol e tempestade ⋆ Loja Uiclap

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Agradeço, de antemão, a todos os que quiserem comprar esse livro feito de água e fogo, por assim dizer, feito de verão.

Obrigado!




18 de novembro de 2024

Conversa paterna número três

Suas derrotas pertencem ao mundo, meu filho. Mas as suas vitórias só pertencem a você e a quem te ama. Decida quais destas bocas, entre vaias de escárnio e beijos de comemoração, você carregará.

Acumulamos muitas faces e muitas vozes ao longo da vida. Recordamos muitos nomes e de muitos entre eles guardamos rancor. Isto em muito pesa as costas tão frágeis da tranquilidade, levar consigo tantas pedras, sequer preciosas, e carregar tantos outros corpos além do nosso.

No que diz respeito a viver melhor em companhia destas muitas sombras, porém, há muito tem funcionado em mim a amizade. E com amizade digo principalmente gostar da minha própria companhia, mesmo à luz destas muitas sombras.

Você gosta da sua própria companhia? Em outros termos, você se alegra no pátio tedioso da solidão? Você é seu amigo, fica feliz com a sua própria voz interna? Isto é importante para não haver rancor, porque é no momento de silêncio que sua mente trará à superfície as faces acumuladas ao longo da vida. Aqui, caberá a você emular vozes outras por nojo da solidão ou habitar em paz o silêncio de si.

Para isso, meu filho, quando estiver conversando com outras pessoas, não seja como alguém que só aguarda o seu momento de falar. É isso o que irá diferenciar do narcisismo essa amizade interna, o amor pela voz do outro, sem que esse outro tome de suas mãos as rédeas do seu ser.

Busque entender quem você é e quem são os outros, o que é sua voz e o que é a voz dos outros. Então, entre derrotas e vitórias, saberá distinguir as bocas de vaia das bocas de beijo. Grande é a paz de quem a isso chega.

10 de novembro de 2024

O cheiro da manga recém-colhida

O cheiro da manga recém-colhida
antecipa algo nela o apodrecer
da própria vida, que é assim

Não comer dela até o fim
significará ter que conviver
com a sua carne apodrecida

Melhor sugá-las ainda vivas
(vida e manga) e fazer de ambas
(velho sol a velar novas plantas)
o sabor grato de dizer sim

Melhor sugá-las ainda vivas
para evitar nelas (manga e vida)
o beijo morno das moscas
(a habitar carcaças e jardins)

9 de novembro de 2024

100 dias até os 30 anos

No dia 23 de novembro de 2024, se Deus assim permitir, farei 30 anos. Pensando nisso, tenho adicionado uma música por dia em minha conta do Instagram, desde que faltavam 100 dias para o meu aniversário, e com isso criei a playlist que se segue.

Hoje estamos no dia 86, mas a playlist até agora possui 87 músicas. Isso aconteceu porque adicionei duas músicas no mesmo dia (34), corrigindo, sem querer, um erro anterior: a contagem havia começado um dia antes. 

Dois erros fizeram um acerto, aparentemente. O que é a vida, ehm?

Clique aqui para acessar a lista de músicas

2 de novembro de 2024

Elogio do estar triste às vezes

Feliz o que contempla em sua própria tristeza
aquilo que a árvore contempla em seu inverno
o seu cálice de descanso, de paciência
e de contemplação.

A alegria é boa e cálida mas quem quiser
viver somente nela
se verá como um animal de cio infinito
insaciável, histérico, ansioso.

É preciso saber o frio
para que o fogo seja bom.
É preciso saber a fome
para que o pão seja de prazer.

Feliz o que contempla em sua própria tristeza
aquilo que o dia contempla em sua noite
o seu cálice de descanso, de paciência
e de contemplação.

19 de outubro de 2024

Canção de boas-vindas para Lourdes

As luzes, Lourdes,
habitam os céus
e também os véus
sobre a terra, amiúde.

Seus irmãos, Lourdes,
exemplos de luzes
que chegaram antes
te ajudarão adiante
do chão que cruzes. 

Seus pais, Lourdes,
exemplos de luzes
de ainda antes
igualmente adiante
da estrada que cruzes.

E eu peço, Lourdes,
ao Senhor das Luzes
Deus desde bem antes
que ilumine adiante
de todos nós, amiúde.

12 de outubro de 2024

Prompt

Escreva um poema que desperte o humano do seu sono de silício.

E seja uma mão a levantar da terra os corações, de modo a escorrer entre os dedos toda a letargia.

Para isso torne-se alguém sensível, sem miasmas de frescura, como aquele que na guerra e mesmo cego ainda tem olhos para uma flor.

Guarde nele algum veneno que fira, não mate, e seja o mel colhido entre ferrões.

Que ele tenha ritmo, rima, soe como um repentino vento fresco em uma noite quente, e lembre a morte, o nascimento, o sol, a tempestade.

Escreva um poema com o sangue do sonho a navegar por suas veias inexistentes.

Quero que ele seja sério, terrível, sincero, feliz.

Tenha a boca irônica, os olhos enormes, uma compaixão inesgotada.

Arome o cheiro do amor recusado, isto é, jasmim.

Arome o cheiro do amor recíproco, isto é, suor.

Que seja longo, como longas são as raízes de árvores antigas que há muito alimentam a muitos.

Tenha paredes como ruínas de castelo, inúteis e tomadas pelo musgo.

Tenha e seja o jardim abandonado da infância.

Escreva um poema, principalmente, feito de palavras como mapas antigos em sua ausência de portos.

E que a todos diga algo, mesmo sem ser lido por ninguém.

5 de outubro de 2024

O fim do imaginário

Imagino angustiados e gordos
meus contemporâneos futuros
sem poesia, filhos, trabalho
robôs escorrendo simpatia
inútil a eles pelas esquinas

Compaixão um pouco
sinto ao imaginá-los
na epidemia de suicídios
dentro de elétricos carros
o fim dos museus, ocos
muitos olhos fechados
depressivos e gordos
ante o fim do imaginário

3 de outubro de 2024

Despedida

Farei da tua voz um hino distante para a minha alma cansada
e peço, amada, que eu mesmo seja isto em teu coração.
Não mais que uma voz de águas sobre a terra árida
ou o descanso da luz que pousa doce sobre teu hálito.
Não mais que um cálice de memórias sem nódoas
ou as mãos macias das velas acesas sobre o pátio.
Peço que penses em mim do modo como ali vimos as nuvens
admirando nelas o que era momento de lua e tempestade.
Então serei para ti aquilo que és para mim, a chuva.
Pois para mim teu riso manso é o orvalho do alívio
e o vento a espalhar flores brancas sobre os ombros da noite.
Pois em mim teu olhar sempre será o perfume do relâmpago
e teu gesto calmo, em meu âmago, sempre um cântico terrível.

28 de setembro de 2024

O tigrinho e os boizinhos

Havia naquela sala cinco telas acesas e dez olhos quase estáticos sobre quatro delas. 

O pai e a mãe, olhando seus respectivos celulares, às vezes riam pelo nariz, em pequenas bufadas, mas os dois adolescentes nem isso faziam e pareciam congelados nas extremidades leste e oeste do longo sofá. 

O volume dessas quatro telas era inaudível uns aos outros, pela distância, e apenas a TV se fazia uma ponte de som entre todos ali. 

Como a luz estava apagada e ninguém prestava atenção na TV, levaram um bom tempo para perceber que a luz tinha acabado. Quem percebeu foi o pai que, depois de rir um pouco pelo nariz, após ver o vídeo de dois políticos trocando socos, resolveu se espreguiçar e tomou nota da ausência da novela.

– Ué, a luz acabou?

Ele era um homem baixo, gordo e com bastante cabelo para sua idade. Tinha por volta dos 55 anos, mais de 5 décadas de vida quase sem pensamentos profundos, o que talvez explicasse seus olhos castanhos levemente bovinos.

Como ninguém respondesse, ele insistiu.

– Vanusa, a luz acabou?

Ao ouvir o próprio nome, a mãe parecia como que despertando de súbito de um sonho mau. Olhou para os filhos, olhou para o marido, olhou para a lâmpada e depois para a TV.

– Não sei, Cido, parece que acabou.

Resmungando, ela se levantou da cadeira em que uma hora antes tinha jantado e testou o interruptor. Realmente, a luz tinha acabado.

– Essa agora! Minha bateria tá quase acabando!

A palavra “bateria”, assim como antes a palavra “Vanusa”, parecia ser o nome em comum dos dois adolescentes, já que, como um relâmpago, ambos pareciam acordar agora de um sonho mau. Eles se olharam.

A menina se chamava Flávia e tinha algum princípio de beleza, de queixo pequeno e boca sarcástica, mas sem muita vida em suas feições. Era levemente histérica e trazia o mesmo olhar bovino do pai.

O menino se chamava Miguel e era como se não existisse. Ao contrário da irmã, sequer consolava-se nele o princípio de beleza jovem que logo ela também perderia. Havia uma espécie de temor contínuo em seu rosto, por baixo do cabelo seboso.

– E agora? Eu só boto pra carregar na hora de dormir, tá quase acabando aqui também! – disse Flávia.

O pai, a mãe e a filha, então, puseram a debater aquilo. O pai estava consternado, contava com a luz para ver o jogo de logo mais. A mãe, que ainda não tinha lavado a louça, odiava a ideia de dormir com pratos e panelas sujos aguardando na pia e disse que procuraria a lanterna em algum lugar. A filha, falando cada vez mais alto, apenas soltava reclamações soltas e pensava se não seria mesmo melhor sumir da conversa com o ficante para soar misteriosa.

Os três, cada um a seu modo, esperavam pelo fim das baterias como quem espera uma catástrofe inevitável. “Aí vem o caminhão do matadouro”, diria um boi, ao passo que o outro lhe responderia algum “foi bom pastar com você, amigo”.

Claro, havia um exagero em tudo isso. E, conforme, nos próximos minutos, os sons de aviso dos celulares se intensificaram, eles andavam pelos cômodos da casa escura, perdidos, com exceção do rapaz.

Uma hora depois, quando já não havia energia nas baterias dos celulares da filha, do pai e da mãe, lembraram do Miguel, já que não encontraram a lanterna e o único lugar em que havia luz ainda era a tela do celular dele.

– Filho, você ainda tem bateria? - disse o pai, lambendo os beiços diante da perspectiva de acompanhar o jogo pelo celular de Miguel.

O menino levantou os olhos, aterrorizado. Puxou para mais perto do rosto o celular e, como em um casulo, curvou o corpo magro sobre o sofá.

A mãe, vendo aquilo e achando estranho, pediu para ver o que ele estava fazendo. Aterrorizado, quase tremendo, ele negou o pedido.

– Menino, o que você está fazendo? Me dá esse celular, Miguel!

Ele, sem ousar tirar os olhos do celular, balançava nervosamente a cabeça. A irmã então arrancou inesperadamente o celular da mão dele, com a força da curiosidade nos pulsos. Olhou para a tela e entregou o celular para a mãe. 

– Eu não acredito nisso! Miguel, você tá jogando o jogo do tigrinho?!

Em uma das raras conversas recentes que tinham construído, a família havia citado o assunto. Um dos colegas de trabalho do Cido estava internado em uma clínica para dependentes após vender quase tudo o que tinha em casa para jogar em um site de apostas como aquele.

Na ocasião do assunto, o pai contou que o seu avô tinha perdido há muito tempo algumas fazendas em jogos de sua época. “Talvez eu fosse rico hoje em dia”, ele disse, lamentoso. 

Considerando isso, o pai e a irmã estavam boquiabertos olhando para Miguel. A mãe gritava, com mínimas variações, o que disse inicialmente. 

– Eu não acredito que você tá jogando! Eu não acredito!

Como quem toma fôlego, Miguel resolveu contar o que estava acontecendo. Antes, porém, precisava afastar a cortina e olhar pela janela, para confirmar o que já desconfiava.

– Gente, eu juro que comecei ganhando! Eu juro! Achei que ia dar pra mudar de vida!

Miguel não ousava mais olhar para ninguém e seus olhos estavam fixos para a própria mão aberta, como se ali ainda houvesse a tela de um celular.

– Foi por isso que eu peguei um dinheiro emprestado, eu…

Pai, mãe e irmã disseram as piores interjeições que conheciam e interromperam o que ele dizia. Ele levantou a voz, porém, e começou a falar rápido, porque precisava terminar de contar para a família.

– Eu tinha certeza que a cartinha ia vir, que eu ia ganhar, ficar rico! Por isso peguei dinheiro com o Marcos agiota! Quem me apresentou foi o vizinho de cá, achei que daria! E olha, eu perdi quase tudo, não consegui pagar! Hoje… Eu… Ele disse que ia me pegar e eu estava tentando ganhar alguma coisa agora pra pagar e o vizinho quando eu contei disse que ele costuma cortar a luz um tempo antes de invadir a casa de quem deve pra cobrar, olhem pra fora, olhem! É só aqui em casa que tá sem luz!

Eles olharam.

Estupefatos, agora, não disseram nada por alguns segundos. Quando Vanusa ia abrindo a boca de novo, dois murros explodiram na porta. 

O desespero escorreu pelos olhos de todos. Mais dois socos na porta, porém, e aquele som lembrou ao pai o vídeo que ele vira há pouco, dos políticos se batendo.

Então ele riu, pelo nariz, uma bovina bufada derradeira.

26 de setembro de 2024

Canção de elogio à adolescência

Adolescência muita opinião pouca inteligência No entanto ah que multidão só ali teve essência

Quantos só ali poemas farão sob sebo, carência

Espinhos, espinhas
carnegão
e indolência

Quantos só ali ah
roerão da paixão
a sua violência

E roerão da vida
seu verão
sua ardência

Vale a pena ah
tanta confusão
vale a penitência

23 de setembro de 2024

O aproveitar a vida

"Mas aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede, porque a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que salte para a vida eterna." - João 4:14

Muitos há que percorrem oceanos
e cruzam matas, montes, anos
em busca do aproveitar a vida.

Muitos há que percorrem mil vilas
e cidades, entre litorâneas e andinas
em busca deste grande sonho.

Poucos, porém, destes percebem
que a vida que tanto perseguem
neles jaz aproveitada e habita.

Como alguém que morresse de sede
nadando num rio contra a corrente
ao buscar além a fonte prometida.

11 de setembro de 2024

As duas cidades da minha infância

Ao passar por Bebedouro
achei que teria sede
assustei em pouco tempo
que o nome era de enfeite
montei de manhã num touro
manso, avoado, gordo
e fui embora de repente

Ao passar por Valentim
achei que teria coragem
mas como era diminutiva
a valentia da viagem
montei logo num pinguim
mais bom do que ruim
e fui embora sem saudade

27 de agosto de 2024

A morte daquele que fazia versos

Texto de 2017, revisitado na ocasião do falecimento do poeta Castro Guerra

Quando um poeta morre, morre um som dentro da voz do vento.

As águas sentem um menor movimento dos peixes, a terra um menor trotar dos cavalos, o ar um menor trovejar de pássaros. Enquanto a melancolia esculpe os gestos com chuva em torno dos castelos, rainhas incendeiam os livros, misturando as cinzas das páginas a suas lágrimas, quando um poeta morre.

Os anciões se curvam, com boa voz, para tentar explicar às crianças o que aconteceu: "O poeta dizia o que a gente não podia, quer dizer, o amanhecer das palavras". "Mas então", uma menininha pode perguntar, "não tem mais de manhã?". "Se vocês continuarem sendo o que são, sempre teremos", eles respondem. Então as crianças entendem que devem continuar inventado o mundo e saem dali correndo tristes porém sorrindo.

Quando um poeta morre nasce um poeta nos olhos de cada menino.

Quando um poeta morre, nuvens diferentes deslocam-se do oriente e aninham-se no peito dos sensíveis. Os alicerces azuis que sustentam os astros fremem mansamente pelo sopro de pesar das musas. 

As musas, inclusive, que por muito tempo forçaram-se indiferentes ao amor que o poeta lhes dedicava, agora podem chorar uma saudade amendoada de ouvir a voz dele, de cheirar seus cabelos, de saber-se objeto de um amor impossível aos homens menores, em seus olhos que se aligeiram em parecer olhos de futuras mães - pois é sempre pelo ventre de uma musa de outrora que um poeta nasce.

Por isso é preciso ser poeta, para que a nossa morte desloque grandes coisas sobre a Terra.

17 de agosto de 2024

O elogio das artes: literatura

Se o mundo fosse jardim, cada um pensaria ser a flor única.

Se o mundo fosse tessitura, cada um pensaria ser o fio de ouro
entre tantos fios de algodão cru.

Por isso, literatura, teu é o reinado das artes.

Porque és o espelho que veste a todos de protagonista.

Porque és o espelho que veste a todos de musa.

Porque há vaidade, literatura, e a tua nobreza é dar de beber a todos
os que quiserem da água do sonhar ser.

Tua é a razão de haver heróis.

E canções, histórias, pinturas, esculturas sobre eles
que queríamos sermos nós.

Tua é, enfim, a razão da haver musas.

E por ti tantas vidas sonhadas passaram a existir. 

Do exagero, da palavra, do entusiasmo de estar vivo.

E saber-se um dia morto.

Sendo a vida cotidiana menor do que a vida imaginada.

Literatura, mentira não nos contaste.

Mas fantasia nos deste.

Todos os meus músculos, que são reais, estremecem
diante de tua voz solar.

A fuligem da história, a lâmina da rima, o chover do ritmo.

Todos os meus músculos tornam-se os fios de ouro
que eu, se o mundo fosse tessitura, pensaria ser.

Teu é o reinado das artes.

E sob teu cetro prosa e tua coroa poesia
marcham as demais artes.

Sonhando pela tua língua serem lembradas.

16 de agosto de 2024

O elogio das artes: pintura

Uma folha pincelada por vez.

O sol, aos poucos o céu.

Depois os olhos de alguém.

De aos poucos, sim, é feita a pintura.

Um azul por vez.

Lembra a manhã, aos poucos tingindo
de rosa e laranja a madrugada.

Lembra amadurecer, embora se pintada verde
a banana do quadro nunca apodrece.

Lembra amadurecer porque a vida é
as flores serem pinceladas uma por vez.

A luz, farol de pintar, aos poucos revelada.

Brilhando mais e mais até ser dia perfeito.

A cor de certa ruga, a doença de certa moda.

A manga, a mangueira, a fome.

Velhice, juventude, o jamais apodrecer.

Tempo.

Pintar as coisas exige tempo.

Demora muito, para durar mais.

Esperar a verde cor da paciência amadurecer.

O elogio das artes: arquitetura

O coração da arquitetura
é o habitar seguro de maneira bela.

Morar, demorar, rememorar.

Esculpir a paz com tijolos de terra.

Antiquíssimo sonho és, arquitetura.

E lembras o sorriso familiar
da minha amada.

Arquitetura, teus contornos cantam
como canta uma criança.

Porque embora sejas grandiosa.

E de grandiosas mãos.

Sempre cabe a ti o espanto.

De nomear o que é recém nascido.

E sempre cabe a ti realizar.

Do antigo sonho a novidade.

Por ser teu dom o de durar
e teu corpo o de ser útil, arquitetura.

Que de cada canto
dos prédios flores nasçam.

Como de cada canto de ti
nasce a audácia.

E que o consolo a nós
que não temos casa.

Seja a beleza que deixas escorrer
por entre as frestas.

Do concreto, que diferente de ti.

É sem asas.

14 de agosto de 2024

O elogio das artes: teatro

O mundo é um palco.

Disse uma voz antiga.

O nojo de ser visto, as faces de desprezo na plateia.

Tornar-se outro para fazer o parto do som de aplausos.

Tornar-se outro, muitos outros.

Para ser amado.

Ou odiado, conforme convém.

Sim, o mundo é um palco.

E o teatro é o palco menor dentro.

De um imenso palco que é o mundo.

Vocês riem? Vocês choram?

Têm medo?

Não tenham medo, ainda sou eu.

Por baixo desta horrenda máscara.

Ainda sou eu, ainda mais horrendo.

Por baixo desta horrenda máscara.

Um dia, teatro, você era sombra
na parede da caverna.

Dançando heróis para dentro
das sombras do coração humano.

Hoje, permaneces isso.

Sombra, teatro.

Sombra.

Pensando bem, sim, tenham medo.

Muito medo.

Afinal, o mundo é um palco.

De cortinas abertas.

Que ficou velho antes de ficar sábio.

13 de agosto de 2024

O elogio das artes: música

Dentro do ventre materno estavas.

Estavas porque você, música, é das artes a única
que mesmo feita fora percebe-se dentro.

O cheiro do som espalha-se através.

Através dos anos.

Através dos muros.

Através da tempestade.

Através, também, das paredes do útero.

Erudita, popular, universal.

Talvez por isso tão torturada, tão retalhada.

Tuas costas em sangue, teu dorso de sonho
rasgado pelos que te cantam sem te amar.

Música, quanto te devo.

Rainha, princesa, prisioneira.

Do desprezo de amor dos ondes.

Do amor de desprezo dos quandos.

Pouco pedes, música, tudo dás.

Embala os órfãos entre os teus seios.

Eu te amo, música, eu te amo de um amor
doente de não poder compô-la.

Em perfume, cordas, sopro, percussão.

Cálices de consolo, de alegria e tristeza.

Nada tenho com o que presenteá-la.

Nada.

Mas tudo o que tenho, música, te dou.

Tudo.

Isto é, o meu silêncio.

12 de agosto de 2024

O elogio das artes: dança

Das artes, a dança é a única que só existe no agora.

É a única arte túnica, que voa no vento.

Mesmo a música, tão ao vivo, é suas partituras.

Mesmo o teatro é a sua literatura.

Mas a dança é a escultura do corpo vivo.

A dança é a arquitetura do corpo vivo.

O poema em suor e ossos.

A dança é síncrona, sempre.

Talvez a que menos se assemelhe às outras
em ser afeita aos museus.

Acho a dança o contrário do museu.

O museu é túnica que guarda para revelar.

A dança é túnica que revela para guardar.

Ambos se movem, é verdade, sob os olhos.

Mas só a dança é levada pelo vento.