2 de novembro de 2025

Breves cartas aos ansiosos: carta 8, corrida

O sentimento implícito na triste frase "pensar é cansativo", falada hoje com tantas variações, gera muita ansiedade por ser fruto de uma espécie de sedentarismo da inteligência.

Pensar muito é uma angústia de quem não tem o controle, nascido da prática, sobre o próprio pensamento.

Pense: as pernas acostumadas a correr quatro quilômetros todos os dias não se cansarão ao correr dois quilômetros amanhã, ao contrário das pernas sedentárias, correto?

Da mesma forma, o pensamento não cansará os seus praticantes cotidianos. Longe disso. Assim como aquele que corre fica angustiado justamente depois de alguns dias sem correr, o mesmo acontece com aquele que conscientemente pensa. Depois de algum tempo, será incômodo ao pensante ficar sem pensar.

Note, porém, que isso vale para o pensamento consciente. Porque há também o pensamento inconsciente, assim como há o agitar de pernas irrefletido de alguém ansioso, em contraposição às maratonas previamente planejadas por algum esportista. 

É geralmente desse "balançar de pernas" que as pessoas cansadas de pensar reclamam. "Overthinking", termo atual para um problema antigo, diz respeito a esse tipo de vulto mental transtornado e sem controle da pessoa que dele sofre, como caminhar sem descanso em um feed infinito de rede social.

Em resumo, o cansaço de pensar ocorre quando pensar não é um exercício praticado de modo atento. É preciso exercitar esse pensamento consciente, portanto, até para reconhecer os padrões de angústia, mesmo que isso signifique parecer mais silencioso, em alguns momentos.

Por isso "os burros são mais felizes" é uma frase mentirosa, já que a própria manifestação de infelicidade é de difícil expressão em uma vida irrefletida. Isso gera a miragem da festa, pois a pessoa permanecerá dançando mesmo internamente angustiada.

Pensar conscientemente pode te deixar silencioso em uma comemoração, por exemplo, se foi durante ela que você resolveu exercitar esse maravilhoso esporte. Faz parte. Mas alcançar o amor ao pensamento vale a pena.

Leia, escreva, pense: isso inaugurará em sua vida interna o saudável costume de se exercitar contra a ansiedade.

1 de novembro de 2025

A manga

O fruto da manhã se chama manga
raiado de sol
e dourado o seu coração de chama

Seus fiapos feitos de ter sido criança
estão no chão que sou
e também na boca do dia que dança

Teu é o verão verbo que avança
manga, lençol
terno e doce que a roupa mancha

Teu é o verbo verão que avança
manga, arrebol
eterno interior da minha infância

29 de outubro de 2025

Brurro

"Então é assim que se enlouquece."

Falou baixo, olhando para a pia, sob a impossibilidade de olhar para os próprios olhos no espelho, como quem tivesse um peso sobre o pescoço.

Estava em uma festa do DCE da universidade em que estudava. Sentia-se triste por olhar no espelho e ver um opressor, entre tantos oprimidos.

"Então é assim que alguém fica doido?"

Falou triste, bem triste, o banheiro público ecoando um pouco a última palavra, dita de fato um pouco mais alta.

"Deve ser", uma voz feminina respondeu.

Um sobressalto desfez o peso sobre o pescoço e fez com que ele levantasse a face e visse a si mesmo, os próprios olhos, no espelho.

"Quem disse isso? Quem é o senhor?", ele perguntou.

"É a Bruna", respondeu a voz feminina novamente.

Ele tinha ouvido, de fato, que a voz era de mulher. Porém, estando em um banheiro masculino, pensou que poderia ser um homem trans, ou uma mulher trans, não sabia, que estivesse ali. Tinha muito medo de ofender, por isso chamara de senhor aquela desconhecida, que aparentemente escolhera estar em um banheiro masculino.

"Coincidentemente eu sou o Bruno", ele disse, olhando ainda para os próprios olhos, como quem tenta se convencer disso. "Mas pode me chamar de Brurro, é o que eu sou", disse e sorriu, lembrando que era assim que o chamavam às vezes os amigos mais engajados. 

"Está tentando me ofender? Está querendo dizer que eu também sou Brurra?"

Bruno engoliu em seco. Fizera uma piada de si mesmo e agora ofendeu uma mulher, ou homem, enfim, ofendeu alguém.

Ele estava do lado de fora das cabines do banheiro, diante do espelho, como já dito, e pela primeira vez olhou, pelo reflexo, para a cabine de onde vinha a voz.

Viu pernas, pernas afrodescendentes, não, já disseram que isso estava em desuso, que era ofensivo. Ele viu, na verdade, pernas pretas. Depiladas, pereciam feitas centímetro a centímetro com cinzel de algum mestre nigeriano (se nigeriano, então por que pensou em cinzel, algo tão simbolicamente europeu?), realmente raras. "Lindas", ele pensou.

"Eu não quis ofender dona de pernas tão lindas."

Por que ele disse aquilo? Mal terminou a frase e se arrependeu de ter dito o que disse. Um silêncio arrastou-se do ralo, de todas as privadas do banheiro, o fedor do silêncio tomava conta de tudo, espesso e vulgar. 

Durou menos de um minuto, o silêncio. Bruno, que durante esse tempo, envergonhado, voltou a abaixar a cabeça, ouviu o barulho da descarga junto ao mover de pernas e roupas de alguém se vestindo.

Foi mesmo Bruna quem se vestiu. Depois abriu a porta. Bruno olhou.

Era um corpo de quase dois metros de altura, firme e feito de ódio. Bruna era trans, de fato, apesar da voz natural.

Sem que dissesse palavra, ela tirou um cartão do bolso, que, desdobrando, transformou em uma lâmina, esguia como um cinzel. Então passou tal lâmina pela pele do pescoço e começou a gritar, em voz agudíssima, clamando por socorro.

Bruno deu um pulo.

"Ei, o que está fazendo? Xiu, o que é isso? Pare, por favor!"

Bruno desesperava-se terrivelmente. 

"Um homem branco está tentando me matar, socorro!", gritava Bruna repetidamente.

Debatia-se, urrava, Bruna. Pelo som da festa e pelo efeito generalizado das drogas, os alunos que festejavam ali perto não ouviram de imediato.

"Socorro!"

Bruno saltou sobre Bruna, depois de algum tempo tentando com súplicas desfazer dela aquelas agressões a si mesma.

Aquele barulho todo crescia. Alguém, enfim ouvindo os gritos, correu, com medo, a chamar outras pessoas, que vieram em mais de dez ver o que estava acontecendo.

Ao entrarem, encontraram Bruno tremendo, sob os últimos convulsionamentos da vida. Ele segurava a lâmina que tirara do próprio bolso há pouco para dar fim à própria morte, crendo ser assassinado por Bruna, não Bruno, pela mesma bruma inexistente que antes ele tinha visto ali no banheiro masculino.

"Então é assim que se enlouquece", pensou, com nojo de morrer, mas já morrendo. 

24 de outubro de 2025

A beleza da loucura

Bonita então a canção que Ofélia
ofereceu àquela loucura de flores
bonita, aérea pois inocente, limpa
embora feita de sanguíneos odores

Bonita a canção que Nero na lira
cantava à cidade que imaginara
sorrindo enquanto Roma morria
ardendo enlouquecida de águas

Beleza a loucura tem de triunfo
em trazer tais canções escondidas
num cântaro arruinado por furos
pelos quais escorre o furor da vida

Beleza a loucura tem no corpo
e nele une os fios antes soltos
como bonita foi enfim Macabéa
feita princesa na feia morte bela

23 de outubro de 2025

Mas sendo eu a árvore

Eu queria mesmo era ser uma árvore, Senhor
com os galhos dormentes de frutos
e curvos de tantas crianças agarradas
queria o vento derrubando meus cabelos
de folhas
e meu tronco de casa
pros pássaros
e meu alimento ser
o que derramou-se na terra
sobre as raízes firmes ancoradas

Mas queria ser uma árvore sendo eu, Senhor
olhar pra cima e pensar
se o céu começa nas nuvens
ou termina nelas
olhar para baixo e balbuciar
feliz algo sobre ser árvore
eu queria mesmo era ser uma árvore
mas sendo eu
a árvore

Tem como?

1 de outubro de 2025

Breves cartas aos ansiosos: carta 7, eclipse

"E se o pior acontecer?"

Há muitos dias lindos que parecem se tornar feios imediatamente após essa pergunta.

"E se o melhor acontecer?"

Por outro lado, há muita beleza que parece surgir nos piores dias após essa outra pergunta.

Porém, as duas são apenas isso: perguntas. Estes hipotéticos dias melhorados e piorados nada mudam, a não ser nós, dentro deles, e a nossa percepção do que eles possuem.

Pessimismo, o vento que profere a primeira interrogação, é o caminho mais curto para parecer profundo. Por isso mesmo, naturalmente, é um caminho artificial para alcançar a profundidade. Muitas pessoas que consideramos inteligentes são apenas pessimistas. Fazem com que vejamos o pior até então não teorizado, de forma a acreditarmos que o pessimista vê uma "verdade oculta".

O otimismo que gera a segunda pergunta é diferente. Também parece ver o que está oculto à realidade, mas seu efeito é o contrário: ser otimista é um dos caminhos mais curtos para parecer tolo. O pensamento deslumbrado e o rosto alegre de quem imagina uma situação positiva adiante são símbolos de quem não parece ver o risco iminente. Muitas pessoas que consideramos tolas são apenas otimistas. 

Pessimismo e otimismo não são iguais, mas ambos geram angústia.

O pessimismo angustia porque distorce negativamente uma realidade que é cruel, mas que nem sempre está banhada em crueldade. Ser pessimista é sofrer antes do sofrimento (por prever que sofrerá), durante o sofrimento (por estar sofrendo) e após o sofrimento (por ter sofrido). 

O otimismo angustia porque distorce positivamente uma realidade realmente possuidora de beleza, mas que é dura. Não se preparar antes de sair de casa para a tempestade que vai cair em poucos minutos é se angustiar por estar encharcado, logo mais. O otimista só sofre quando cai do cavalo. Mas parece cair do cavalo, por falta de preparação, mais vezes.

Tudo bem, e agora? Acredito que a solução pra esse impasse, de vermos menos ou vermos mais do que existe, não é apenas vermos as coisas como elas são. Afinal de contas, isso é praticamente impossível: cada um imprime ao mundo o seu modo de olhar, distorcido por sua própria história.

O caminho está em reconhecermos a instabilidade do real. As coisas mudam o tempo todo, há beleza e há dor. Há noite, dia, noite de novo e também há eclipses que são noites dentro dos dias. Se o que vemos é a sucessão de mortes que chamamos vida, preparemo-nos para a impossibilidade de estarmos sempre preparados. Prepare-se para a vida com o coração aberto de quem às vezes vai exagerar para mais, às vezes para menos, mas sempre consciente da própria inconsciência em relação à totalidade.

E como fazer isso? Na minha opinião, com amor à realidade e à multiplicidade inerente a ela. Amor, isto é, o sentimento positivo em relação ao outro, ternura desinteressada, curiosidade alegre, forma de parecer tão sábio quanto tolo.

Assim, a ansiedade terá o mesmo caráter pontual do eclipse: acontece, mas é tão raro quanto passageiro.

14 de setembro de 2025

A moeda

Circular e lisa como um seio
mas verdadeiramente lisa
sem o consolo de algum pelo.

Circular e lisa como espelho
e sem o diâmetro da pia
vazia que espera algo dentro.

O dinheiro físico, a moeda
espalha todo seu cheiro
em nosso meio e admoesta

a vermos valor nas pedras
que restam neste reino
cheio de moda, de merda

e de medo.

7 de setembro de 2025

Hino do sete de setembro futuro

Quando Brasília caiu e parte
do seu cadáver brilhou ao sol

era de brasa feita a tarde
e de sangue o seu lençol.

A capital nomeada ilha
como brasa pálida caiu.

Adeus, então, Brasília.
Olá, ainda, Brasil.

6 de setembro de 2025

Breves cartas aos ansiosos: carta 6, rosas

Você não é um gênio. Não há, em sua individualidade, nada que sirva de fato à criação de algo verdadeiramente novo e revolucionário. Isso te ofendeu, por ser calunioso? Se ofendeu, não deveria: mesmo eu não conhecendo os olhos que passam agora pelas palavras aqui escritas, sei que provavelmente não são os olhos de um gênio. "Provavelmente", inclusive, é uma bajulação com o improvável, considerando ser praticamente nenhuma a chance desse texto ser lido por algum gênio. Os gênios são figuras raríssimas, ainda mais raramente reconhecidos dessa forma enquanto vivos.

Então, se você não é um gênio, por que se ofende tanto em ser comum? Qual a razão para se angustiar tanto com isso? Porque, se você não é um gênio, você é comum. Qual o problema? Uma marca pode fazer você crer em algo diferente, propagando que você é individualmente precioso por usar um tênis (vestido por outros milhares) ou uma ideologia (vestida por outros milhões), mas isso só é crido tão facilmente por alguém comum. Seu cabelo é rosa? Seu rosto é harmonizado? Você é rico, pobre, alto, baixo? Nada disso faz de você um gênio - embora possa fazer com que, entre outros comuns, você brilhe mais.

E daí? Por que se angustiar tanto com isso? Há muita ansiedade nascida do desejo de se destacar, ironicamente causando o efeito contrário, criando uma massa de indestacáveis. Como as modas são custosas às individualidades! E, no entanto, são chamadas de modas os produtos mais vendidos como produtores de individualidade. 

Você não é um gênio. Não se ofenda com isso. Ser comum é ser livre da necessidade da vida como obra, algo que a tantos gênios destruiu ao longo de tantos séculos. Descubra quem você realmente é, sobretudo, e viva sob essa medida, não sob a medida do que você finge ser. "Rega as tuas plantas, / Ama as tuas rosas. / O resto é a sombra / De árvores alheias" - como escreveu, certa vez, um gênio, morto hoje como quase todos os de sua estirpe.

1 de setembro de 2025

Canção de boas-vindas para Oliver

Olha e vê, Oliver
tanta coisa no mundo
esperando por você!

Tanta palavra a aprender
tantos rios rasos, fundos
tantos risos rindo juntos
tanta grama pra correr!

Teus pais, teu irmão, muitos
dos teus amigos futuros
todos esperam por você
olha e vê, Oliver!

Ser primogênito, Pyetro

"Porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos." - Romanos 8:29

Ser primogênito, Pyetro
significa ser o exemplo.

Significa ter os passos
seguidos de perto
e ter no irmão menor
um pequeno espelho.

Como sei disso, Pyetro?

Também eu
entre meus irmãos
cheguei primeiro.

Mas não deixe que isso
tenha para você
muito peso.

Porque será importante
estar de pé, Pyetro.

E caso seja difícil
lidar com isso
lembre-se de Cristo.

Ele auxilia
onde somos
indefesos.

Ele é
de todos nós
o Primogênito.

21 de agosto de 2025

Canção do Boi Fofoca

Quem rumina a existência alheia
de observá-la diariamente no pasto
não liga para quem montado o arreia
e dobra-lhe, gordo, alheio, de quatro.

Quem rumina a existência alheia
sacia-se em observar o seu alvo
e dos erros vizinhos faz uma ceia
enquanto baba sobre o campo calvo.

Quem rumina a existência alheia
o faz por ser este o consolo cansado
do que vê a bela campina como feia
e no feio destino do ruminar um fato.

18 de agosto de 2025

Se eu morrer antes da próxima primavera

Se a minha morte vier antes
da próxima primavera
não quero que ela seja o porquê
das flores serem menos belas para você.

Havendo primavera e havendo flores
não cometa contra mim a ofensa
de desprezar nelas a beleza.

Muitos homens melhores do que eu
já morreram
e a primavera ainda vem, ainda bem.

Console-se, quando eu tiver morrido,
em saber que um dia estive vivo
e que vi primaveras indo e vindo.

17 de agosto de 2025

Breves cartas aos ansiosos: carta 5, espelho

Tornar a respiração sempre intencional. Já pensou nisso? Se precisássemos ter a intenção de respirar para fazê-lo, não poderíamos dormir, por exemplo. Ou poderíamos, contanto que sempre sonhássemos que estamos intencionalmente respirando. E quanto aos bebês? Um tapinha ao nascer talvez não fosse suficiente, talvez fosse preciso ensinar a ter a intenção de respirar... Mas como? Parece cansativo.

A respiração natural, assim, irrefletida, permite existirmos. É algo que sustenta o nosso ser e nos esgotaria se fosse intencional o tempo todo. Porém, é interessante, às vezes, pensar em respirar, como quando a chuva começa a cair e deliberadamente abrimos mais as narinas para sentirmos o petricor (aquele cheiro bom de terra molhada) ou como quando buscamos respirar profundamente para nos acalmarmos.

O pensamento existe de forma parecida com a respiração. A maior parte dos pensamentos ocorre (e é bom que ocorra) de maneira involuntária. Mas é também bom, de vez em quando, pensar voluntariamente, sobre o tempo, sobre o espaço, sobre o viver no automático... E também sobre as muitas angústias que alimentamos de forma involuntária. 

Sim, há pensamentos que angustiam voluntariamente, mas, seja sincero, você acha que seu número é maior do que das angústias que você possui sem intencionalidade? 

Um espelho, mesmo que nós não percebamos a sua presença, nos reflete. Estando nós feios ou bonitos, havendo luz e proximidade suficiente, apareceremos nele. A intencionalidade dele, ou a nossa, não possui relação com o fato de haver reflexão. Contudo, se alguém quiser saber se o seu cabelo está despenteado, será preciso olhar para o reflexo até então passivo.

"Por que eu me angustio tanto com isso?" – essa é uma boa pergunta a ser feita. Ser refletido sem refletir pode ser menos cansativo, é verdade, mas não dá pra saber se os cabelos do pensamento estão despenteados até propositalmente olhar para eles. 

10 de agosto de 2025

O Queijo Minas

Queijo Minas, tua
é a textura da vida: firme
antes do corte, úmida
após a partida.

Queijo Minas, combinas
com o doce e com o sal
entre ambos igual
o beijo de tuas resinas.

Queijo Minas, suave
o teu gosto envolve
o que dá sabor
às coisas vivas

isto é, o fulgor
de claras lamparinas
e a cor
daquilo que iluminam.

5 de agosto de 2025

Dois condenados conversam

- A vida toda não fui amado
mas hoje cessa esse enfado.
Hoje vou morrer! E você?

- Deixo o existir bonito 
que amei, correspondido.
Hoje vou morrer. E você?

- Sorrio de estar consolado
em ruir a vida, este cadeado.
Hoje vou morrer! E você?

- Deixo cão, esposa, filho
ainda moço, todos vivos.
Hoje vou morrer. E você?

- Eu? Ressentido e errado.
Quisera ter alguém ao lado.
Hoje vou morrer! E você?

- Aqui comigo está Cristo
e estaremos nós contigo.
Hoje vou morrer. E você?

- Eu também, meus amigos.

1 de agosto de 2025

Breve imagem de saudade

Acolher as gotas da chuva
em minhas mãos entreabertas
e vê-las um instante represadas
tomando a face da minha avó
pouco antes de escorrerem
lentas entre os meus dedos.

28 de julho de 2025

Breves cartas aos ansiosos: carta 4, pescaria

Contentamento. Um sentimento detestado em nossa época. Afinal de contas, qual o problema em se contentar? Muitos dirão que isso significa estar em "uma zona de conforto", impedindo grandes feitos. Acontece justamente que contentar-se é aquilo que mais gera a paz existencial necessária para os grandes feitos.

Estabilidade de dias, isto é, saber que haverá comida no prato amanhã e que um teto permanecerá sobre os seus músculos, possibilita aos gênios criarem de forma plena. Mas a "zona do desconforto" leva o título de fértil geralmente em cenários diferentes. Não quando há fome ou desabrigo, mas quando, havendo até mesmo uma vida materialmente farta, a angústia existencial aflora.

Então a ansiedade se faz presente. A ansiedade gosta dos descontentes, pois são estes que temem a lâmina do futuro com mais tremor. E estes são, tantas vezes, os que menos razão de descontentamento possuem. Sobre isso, há uma canção de Dorival Caymmi, "Pescaria (Canoeiro)". Ela lista várias atividades de trabalho e agradece. E, só sendo isso, ela transborda alegria, pois é o movimento consciente do trabalho dando frutos sadios. "Cerca o peixe / Bate o remo / Puxa corda / Colhe a rede / Ô canoeiro / Puxa rede do mar // Louvado seja Deus / Ó meu Pai". 

Por que eu trouxe ela como exemplo? Porque as pessoas mais simples, tendo tão pouco, podem se contentar com aquilo que os descontentes julgam como pouco digno de vitória. Naturalmente, isso não é um louvor à miséria, está mais para uma conversa sobre o peso que damos às coisas supérfluas para o estabelecimento da nossa paz.

O essencial para o contentamento é simples: trabalhe pelo que importa, reconheça os frutos já colhidos, cante canções de gratidão. Lembre-se de quão firme precisa estar o braço do pescador para que ele possa recolher da água o seu sustento.

20 de julho de 2025

O sol romântico

Não se move a lua por eu amá-la 
mas vou à janela para vê-la. 
Se a lua também não está parada
será que ela ama alguma estrela? 

17 de julho de 2025

Se os humanos florescessem

Se
da mesma forma como os ipês
os humanos florescessem
muita coisa seria diferente.

Existiriam grandes competições
que entronariam os donos
dos maiores arranjos de cores.

Ruas, bairros, cidades
teriam os nomes desses vencedores
que carregariam consigo o consolo
de todo o restante da espécie.

Vencer tais disputas seria
o maior sonho da maioria
de modo que ao não conseguirem
sequer delas participar
sentiriam para sempre a angústia
desabrochar.

Se
os humanos florescessem
seria de senso comum
que as diferenças existentes
entre as floradas
influenciavam e influenciadas
eram pelos pensamentos.

De modo que aqueles
a florescerem em azul
seriam considerados nobres talvez
ou exageradamente abstratos
enquanto os de pequenas pétalas
seriam considerados piegas.

Isso faria com que cirurgias
fossem criadas e popularizadas
para harmonizar aquilo que se era
com o que se gostaria de ser.

Muita depressão haveria
e pétalas voariam
a despeito de ser ou não
outono.

Sob o colorido das formas
e o múltiplo formato das cores
haveria divisão entre os humanos.

Muita coisa seria diferente
se da mesma forma como os ipês
os humanos florescessem.