28 de julho de 2025

Breves cartas aos ansiosos: carta 4, pescaria

Contentamento. Um sentimento detestado em nossa época. Afinal de contas, qual o problema em se contentar? Muitos dirão que isso significa estar em "uma zona de conforto", impedindo grandes feitos. Acontece justamente que contentar-se é aquilo que mais gera a paz existencial necessária para os grandes feitos.

Estabilidade de dias, isto é, saber que haverá comida no prato amanhã e que um teto permanecerá sobre os seus músculos, possibilita aos gênios criarem de forma plena. Mas a "zona do desconforto" leva o título de fértil geralmente em cenários diferentes. Não quando há fome ou desabrigo, mas quando, havendo até mesmo uma vida materialmente farta, a angústia existencial aflora.

Então a ansiedade se faz presente. A ansiedade gosta dos descontentes, pois são estes que temem a lâmina do futuro com mais tremor. E estes são, tantas vezes, os que menos razão de descontentamento possuem. Sobre isso, há uma canção de Dorival Caymmi, "Pescaria (Canoeiro)". Ela lista várias atividades de trabalho e agradece. E, só sendo isso, ela transborda alegria, pois é o movimento consciente do trabalho dando frutos sadios. "Cerca o peixe / Bate o remo / Puxa corda / Colhe a rede / Ô canoeiro / Puxa rede do mar // Louvado seja Deus / Ó meu Pai". 

Por que eu trouxe ela como exemplo? Porque as pessoas mais simples, tendo tão pouco, podem se contentar com aquilo que os descontentes julgam como pouco digno de vitória. Naturalmente, isso não é um louvor à miséria, está mais para uma conversa sobre o peso que damos às coisas supérfluas para o estabelecimento da nossa paz.

O essencial para o contentamento é simples: trabalhe pelo que importa, reconheça os frutos já colhidos, cante canções de gratidão. Lembre-se de quão firme precisa estar o braço do pescador para que ele possa recolher da água o seu sustento.

20 de julho de 2025

O sol romântico

Não se move a lua por eu amá-la 
mas vou à janela para vê-la. 
Se a lua também não está parada
será que ela ama alguma estrela? 

17 de julho de 2025

Se os humanos florescessem

Se
da mesma forma como os ipês
os humanos florescessem
muita coisa seria diferente.

Existiriam grandes competições
que entronariam os donos
dos maiores arranjos de cores.

Ruas, bairros, cidades
teriam os nomes desses vencedores
que carregariam consigo o consolo
de todo o restante da espécie.

Vencer tais disputas seria
o maior sonho da maioria
de modo que ao não conseguirem
sequer delas participar
sentiriam para sempre a angústia
desabrochar.

Se
os humanos florescessem
seria de senso comum
que as diferenças existentes
entre as floradas
influenciavam e influenciadas
eram pelos pensamentos.

De modo que aqueles
a florescerem em azul
seriam considerados nobres talvez
ou exageradamente abstratos
enquanto os de pequenas pétalas
seriam considerados piegas.

Isso faria com que cirurgias
fossem criadas e popularizadas
para harmonizar aquilo que se era
com o que se gostaria de ser.

Muita depressão haveria
e pétalas voariam
a despeito de ser ou não
outono.

Sob o colorido das formas
e o múltiplo formato das cores
haveria divisão entre os humanos.

Muita coisa seria diferente
se da mesma forma como os ipês
os humanos florescessem.

15 de julho de 2025

O temor da palavra câncer

Represar as piores palavras
não enxuga nelas a dor
que há no dom de evitá-las.

Represar as piores palavras
não retém nelas o calor
que só coisas vivas guardam.

Porém, tenta-se: guardadas
as letras de pior odor
habitam bocas, podres casas

feitas do silêncio que aguarda
florir no tumor do temor
a flor do câncer de palavra.

9 de julho de 2025

Aquele que descobriu a música

Aquele que descobriu a música
ouvindo o coração de um filho
abriu para o amor
um vivo caminho.

Porque não há senão no outro
a floração da música
na colheita do outro
a sua seiva e viço.

O amor é isso
ter alegria pelo outro
como por mim mesmo
alegria tenho tido.

O amor é descobrir
na música no outro
o que há muito tempo
em mim tenho ouvido.