29 de outubro de 2025

Brurro

"Então é assim que se enlouquece."

Falou baixo, olhando para a pia, sob a impossibilidade de olhar para os próprios olhos no espelho, como quem tivesse um peso sobre o pescoço.

Estava em uma festa do DCE da universidade em que estudava. Sentia-se triste por olhar no espelho e ver um opressor, entre tantos oprimidos.

"Então é assim que alguém fica doido?"

Falou triste, bem triste, o banheiro público ecoando um pouco a última palavra, dita de fato um pouco mais alta.

"Deve ser", uma voz feminina respondeu.

Um sobressalto desfez o peso sobre o pescoço e fez com que ele levantasse a face e visse a si mesmo, os próprios olhos, no espelho.

"Quem disse isso? Quem é o senhor?", ele perguntou.

"É a Bruna", respondeu a voz feminina novamente.

Ele tinha ouvido, de fato, que a voz era de mulher. Porém, estando em um banheiro masculino, pensou que poderia ser um homem trans, ou uma mulher trans, não sabia, que estivesse ali. Tinha muito medo de ofender, por isso chamara de senhor aquela desconhecida, que aparentemente escolhera estar em um banheiro masculino.

"Coincidentemente eu sou o Bruno", ele disse, olhando ainda para os próprios olhos, como quem tenta se convencer disso. "Mas pode me chamar de Brurro, é o que eu sou", disse e sorriu, lembrando que era assim que o chamavam às vezes os amigos mais engajados. 

"Está tentando me ofender? Está querendo dizer que eu também sou Brurra?"

Bruno engoliu em seco. Fizera uma piada de si mesmo e agora ofendeu uma mulher, ou homem, enfim, ofendeu alguém.

Ele estava do lado de fora das cabines do banheiro, diante do espelho, como já dito, e pela primeira vez olhou, pelo reflexo, para a cabine de onde vinha a voz.

Viu pernas, pernas afrodescendentes, não, já disseram que isso estava em desuso, que era ofensivo. Ele viu, na verdade, pernas pretas. Depiladas, pereciam feitas centímetro a centímetro com cinzel de algum mestre nigeriano (se nigeriano, então por que pensou em cinzel, algo tão simbolicamente europeu?), realmente raras. "Lindas", ele pensou.

"Eu não quis ofender dona de pernas tão lindas."

Por que ele disse aquilo? Mal terminou a frase e se arrependeu de ter dito o que disse. Um silêncio arrastou-se do ralo, de todas as privadas do banheiro, o fedor do silêncio tomava conta de tudo, espesso e vulgar. 

Durou menos de um minuto, o silêncio. Bruno, que durante esse tempo, envergonhado, voltou a abaixar a cabeça, ouviu o barulho da descarga junto ao mover de pernas e roupas de alguém se vestindo.

Foi mesmo Bruna quem se vestiu. Depois abriu a porta. Bruno olhou.

Era um corpo de quase dois metros de altura, firme e feito de ódio. Bruna era trans, de fato, apesar da voz natural.

Sem que dissesse palavra, ela tirou um cartão do bolso, que, desdobrando, transformou em uma lâmina, esguia como um cinzel. Então passou tal lâmina pela pele do pescoço e começou a gritar, em voz agudíssima, clamando por socorro.

Bruno deu um pulo.

"Ei, o que está fazendo? Xiu, o que é isso? Pare, por favor!"

Bruno desesperava-se terrivelmente. 

"Um homem branco está tentando me matar, socorro!", gritava Bruna repetidamente.

Debatia-se, urrava, Bruna. Pelo som da festa e pelo efeito generalizado das drogas, os alunos que festejavam ali perto não ouviram de imediato.

"Socorro!"

Bruno saltou sobre Bruna, depois de algum tempo tentando com súplicas desfazer dela aquelas agressões a si mesma.

Aquele barulho todo crescia. Alguém, enfim ouvindo os gritos, correu, com medo, a chamar outras pessoas, que vieram em mais de dez ver o que estava acontecendo.

Ao entrarem, encontraram Bruno tremendo, sob os últimos convulsionamentos da vida. Ele segurava a lâmina que tirara do próprio bolso há pouco para dar fim à própria morte, crendo ser assassinado por Bruna, não Bruno, pela mesma bruma inexistente que antes ele tinha visto ali no banheiro masculino.

"Então é assim que se enlouquece", pensou, com nojo de morrer, mas já morrendo. 

24 de outubro de 2025

A beleza da loucura

Bonita então a canção que Ofélia
ofereceu àquela loucura de flores
bonita, aérea pois inocente, limpa
embora feita de sanguíneos odores

Bonita a canção que Nero na lira
cantava à cidade que imaginara
sorrindo enquanto Roma morria
ardendo enlouquecida de águas

Beleza a loucura tem de triunfo
em trazer tais canções escondidas
num cântaro arruinado por furos
pelos quais escorre o furor da vida

Beleza a loucura tem no corpo
e nele une os fios antes soltos
como bonita foi enfim Macabéa
feita princesa na feia morte bela

23 de outubro de 2025

Mas sendo eu a árvore

Eu queria mesmo era ser uma árvore, Senhor
com os galhos dormentes de frutos
e curvos de tantas crianças agarradas
queria o vento derrubando meus cabelos
de folhas
e meu tronco de casa
pros pássaros
e meu alimento ser
o que derramou-se na terra
sobre as raízes firmes ancoradas

Mas queria ser uma árvore sendo eu, Senhor
olhar pra cima e pensar
se o céu começa nas nuvens
ou termina nelas
olhar para baixo e balbuciar
feliz algo sobre ser árvore
eu queria mesmo era ser uma árvore
mas sendo eu
a árvore

Tem como?

1 de outubro de 2025

Breves cartas aos ansiosos: carta 7, eclipse

"E se o pior acontecer?"

Há muitos dias lindos que parecem se tornar feios imediatamente após essa pergunta.

"E se o melhor acontecer?"

Por outro lado, há muita beleza que parece surgir nos piores dias após essa outra pergunta.

Porém, as duas são apenas isso: perguntas. Estes hipotéticos dias melhorados e piorados nada mudam, a não ser nós, dentro deles, e a nossa percepção do que eles possuem.

Pessimismo, o vento que profere a primeira interrogação, é o caminho mais curto para parecer profundo. Por isso mesmo, naturalmente, é um caminho artificial para alcançar a profundidade. Muitas pessoas que consideramos inteligentes são apenas pessimistas. Fazem com que vejamos o pior até então não teorizado, de forma a acreditarmos que o pessimista vê uma "verdade oculta".

O otimismo que gera a segunda pergunta é diferente. Também parece ver o que está oculto à realidade, mas seu efeito é o contrário: ser otimista é um dos caminhos mais curtos para parecer tolo. O pensamento deslumbrado e o rosto alegre de quem imagina uma situação positiva adiante são símbolos de quem não parece ver o risco iminente. Muitas pessoas que consideramos tolas são apenas otimistas. 

Pessimismo e otimismo não são iguais, mas ambos geram angústia.

O pessimismo angustia porque distorce negativamente uma realidade que é cruel, mas que nem sempre está banhada em crueldade. Ser pessimista é sofrer antes do sofrimento (por prever que sofrerá), durante o sofrimento (por estar sofrendo) e após o sofrimento (por ter sofrido). 

O otimismo angustia porque distorce positivamente uma realidade realmente possuidora de beleza, mas que é dura. Não se preparar antes de sair de casa para a tempestade que vai cair em poucos minutos é se angustiar por estar encharcado, logo mais. O otimista só sofre quando cai do cavalo. Mas parece cair do cavalo, por falta de preparação, mais vezes.

Tudo bem, e agora? Acredito que a solução pra esse impasse, de vermos menos ou vermos mais do que existe, não é apenas vermos as coisas como elas são. Afinal de contas, isso é praticamente impossível: cada um imprime ao mundo o seu modo de olhar, distorcido por sua própria história.

O caminho está em reconhecermos a instabilidade do real. As coisas mudam o tempo todo, há beleza e há dor. Há noite, dia, noite de novo e também há eclipses que são noites dentro dos dias. Se o que vemos é a sucessão de mortes que chamamos vida, preparemo-nos para a impossibilidade de estarmos sempre preparados. Prepare-se para a vida com o coração aberto de quem às vezes vai exagerar para mais, às vezes para menos, mas sempre consciente da própria inconsciência em relação à totalidade.

E como fazer isso? Na minha opinião, com amor à realidade e à multiplicidade inerente a ela. Amor, isto é, o sentimento positivo em relação ao outro, ternura desinteressada, curiosidade alegre, forma de parecer tão sábio quanto tolo.

Assim, a ansiedade terá o mesmo caráter pontual do eclipse: acontece, mas é tão raro quanto passageiro.