"Então é assim que se enlouquece."
Falou baixo, olhando para a pia, sob a impossibilidade de olhar para os próprios olhos no espelho, como quem tivesse um peso sobre o pescoço.
Estava em uma festa do DCE da universidade em que estudava. Sentia-se triste por olhar no espelho e ver um opressor, entre tantos oprimidos.
"Então é assim que alguém fica doido?"
Falou triste, bem triste, o banheiro público ecoando um pouco a última palavra, dita de fato um pouco mais alta.
"Deve ser", uma voz feminina respondeu.
Um sobressalto desfez o peso sobre o pescoço e fez com que ele levantasse a face e visse a si mesmo, os próprios olhos, no espelho.
"Quem disse isso? Quem é o senhor?", ele perguntou.
"É a Bruna", respondeu a voz feminina novamente.
Ele tinha ouvido, de fato, que a voz era de mulher. Porém, estando em um banheiro masculino, pensou que poderia ser um homem trans, ou uma mulher trans, não sabia, que estivesse ali. Tinha muito medo de ofender, por isso chamara de senhor aquela desconhecida, que aparentemente escolhera estar em um banheiro masculino.
"Coincidentemente eu sou o Bruno", ele disse, olhando ainda para os próprios olhos, como quem tenta se convencer disso. "Mas pode me chamar de Brurro, é o que eu sou", disse e sorriu, lembrando que era assim que o chamavam às vezes os amigos mais engajados.
"Está tentando me ofender? Está querendo dizer que eu também sou Brurra?"
Bruno engoliu em seco. Fizera uma piada de si mesmo e agora ofendeu uma mulher, ou homem, enfim, ofendeu alguém.
Ele estava do lado de fora das cabines do banheiro, diante do espelho, como já dito, e pela primeira vez olhou, pelo reflexo, para a cabine de onde vinha a voz.
Viu pernas, pernas afrodescendentes, não, já disseram que isso estava em desuso, que era ofensivo. Ele viu, na verdade, pernas pretas. Depiladas, pereciam feitas centímetro a centímetro com cinzel de algum mestre nigeriano (se nigeriano, então por que pensou em cinzel, algo tão simbolicamente europeu?), realmente raras. "Lindas", ele pensou.
"Eu não quis ofender dona de pernas tão lindas."
Por que ele disse aquilo? Mal terminou a frase e se arrependeu de ter dito o que disse. Um silêncio arrastou-se do ralo, de todas as privadas do banheiro, o fedor do silêncio tomava conta de tudo, espesso e vulgar.
Durou menos de um minuto, o silêncio. Bruno, que durante esse tempo, envergonhado, voltou a abaixar a cabeça, ouviu o barulho da descarga junto ao mover de pernas e roupas de alguém se vestindo.
Foi mesmo Bruna quem se vestiu. Depois abriu a porta. Bruno olhou.
Era um corpo de quase dois metros de altura, firme e feito de ódio. Bruna era trans, de fato, apesar da voz natural.
Sem que dissesse palavra, ela tirou um cartão do bolso, que, desdobrando, transformou em uma lâmina, esguia como um cinzel. Então passou tal lâmina pela pele do pescoço e começou a gritar, em voz agudíssima, clamando por socorro.
Bruno deu um pulo.
"Ei, o que está fazendo? Xiu, o que é isso? Pare, por favor!"
Bruno desesperava-se terrivelmente.
"Um homem branco está tentando me matar, socorro!", gritava Bruna repetidamente.
Debatia-se, urrava, Bruna. Pelo som da festa e pelo efeito generalizado das drogas, os alunos que festejavam ali perto não ouviram de imediato.
"Socorro!"
Bruno saltou sobre Bruna, depois de algum tempo tentando com súplicas desfazer dela aquelas agressões a si mesma.
Aquele barulho todo crescia. Alguém, enfim ouvindo os gritos, correu, com medo, a chamar outras pessoas, que vieram em mais de dez ver o que estava acontecendo.
Ao entrarem, encontraram Bruno tremendo, sob os últimos convulsionamentos da vida. Ele segurava a lâmina que tirara do próprio bolso há pouco para dar fim à própria morte, crendo ser assassinado por Bruna, não Bruno, pela mesma bruma inexistente que antes ele tinha visto ali no banheiro masculino.
"Então é assim que se enlouquece", pensou, com nojo de morrer, mas já morrendo.