26 de maio de 2021

O Desconstrucionista

Primeiro, me provaram que não sou macho nem fêmea.

Depois, vieram e rasgaram com uma faca sublime o núcleo da minha visão; disseram estar tirando as escamas dos meus olhos. Me provaram que o sol (eu já o não via) não existia e provaram que a boa brisa sobre a pele era a ilusão fascista dos meus sentidos.

Provaram que minha família (meus irmãos, minha mãe) eram estruturas de poder a demolir na minha consciência inferior; seu cão é seu único companheiro, disseram, e me chamaram pai de pet.

Os professores, disseram, são estes que detêm autoridade sobre a vossa moleira rosada: mate a todos!, eles disseram.

Tudo é arte, tudo é cultura, gritaram, arremessando o estrume basilar que fazia parte da melhor escultura do melhor escultor do nosso tempo.

Depois me convenceram a comprar suas aulas, seus discos, seus ritos.

Hoje já está mais do que provado que não existo.

6 de maio de 2021

O testamento

Deixo tudo às palavras, estas
pelas quais agora mesmo
passo os olhos dos meus dedos
orvalho, raízes, vinho
tempestades
estas palavras e todas as que conheço
serviram para dizer o amor
que impossivelmente distingue-se
em palavras
nos muros das casas
nos dentes cerrados da morte
como cercas
as palavras, estas
pelas quais menti ao mundo
e tentei mentir a Deus
palavras, orgulho
doença, ouro, navalha
iconoclastia, harpas
que usaram-me enquanto as uso
no impossível permanecer
mudo
as vagens das palavras
sua armadura, suas asas
seu rosto febril de nojo
sua loucura calada
e o contorno morno do sonho
o perdido contorno do sonho
naufragado em larvas

Há palavras tão lindas
e o amor
esta palavra que não é linda
é maior do que todas elas
tudo deixo à palavra amor
tudo
e às outras palavras