21 de agosto de 2025

Canção do Boi Fofoca

Quem rumina a existência alheia
de observá-la diariamente no pasto
não liga para quem montado o arreia
e dobra-lhe, gordo, alheio, de quatro.

Quem rumina a existência alheia
sacia-se em observar o seu alvo
e dos erros vizinhos faz uma ceia
enquanto baba sobre o campo calvo.

Quem rumina a existência alheia
o faz por ser este o consolo cansado
do que vê a bela campina como feia
e no feio destino do ruminar um fato.

18 de agosto de 2025

Se eu morrer antes da próxima primavera

Se a minha morte vier antes
da próxima primavera
não quero que ela seja o porquê
das flores serem menos belas para você.

Havendo primavera e havendo flores
não cometa contra mim a ofensa
de desprezar nelas a beleza.

Muitos homens melhores do que eu
já morreram
e a primavera ainda vem, ainda bem.

Console-se, quando eu tiver morrido,
em saber que um dia estive vivo
e que vi primaveras indo e vindo.

17 de agosto de 2025

Breves cartas aos ansiosos: carta 5, espelho

Tornar a respiração sempre intencional. Já pensou nisso? Se precisássemos ter a intenção de respirar para fazê-lo, não poderíamos dormir, por exemplo. Ou poderíamos, contanto que sempre sonhássemos que estamos intencionalmente respirando. E quanto aos bebês? Um tapinha ao nascer talvez não fosse suficiente, talvez fosse preciso ensinar a ter a intenção de respirar... Mas como? Parece cansativo.

A respiração natural, assim, irrefletida, permite existirmos. É algo que sustenta o nosso ser e nos esgotaria se fosse intencional o tempo todo. Porém, é interessante, às vezes, pensar em respirar, como quando a chuva começa a cair e deliberadamente abrimos mais as narinas para sentirmos o petricor (aquele cheiro bom de terra molhada) ou como quando buscamos respirar profundamente para nos acalmarmos.

O pensamento existe de forma parecida com a respiração. A maior parte dos pensamentos ocorre (e é bom que ocorra) de maneira involuntária. Mas é também bom, de vez em quando, pensar voluntariamente, sobre o tempo, sobre o espaço, sobre o viver no automático... E também sobre as muitas angústias que alimentamos de forma involuntária. 

Sim, há pensamentos que angustiam voluntariamente, mas, seja sincero, você acha que seu número é maior do que das angústias que você possui sem intencionalidade? 

Um espelho, mesmo que nós não percebamos a sua presença, nos reflete. Estando nós feios ou bonitos, havendo luz e proximidade suficiente, apareceremos nele. A intencionalidade dele, ou a nossa, não possui relação com o fato de haver reflexão. Contudo, se alguém quiser saber se o seu cabelo está despenteado, será preciso olhar para o reflexo até então passivo.

"Por que eu me angustio tanto com isso?" – essa é uma boa pergunta a ser feita. Ser refletido sem refletir pode ser menos cansativo, é verdade, mas não dá pra saber se os cabelos do pensamento estão despenteados até propositalmente olhar para eles. 

10 de agosto de 2025

O Queijo Minas

Queijo Minas, tua
é a textura da vida: firme
antes do corte, úmida
após a partida.

Queijo Minas, combinas
com o doce e com o sal
entre ambos igual
o beijo de tuas resinas.

Queijo Minas, suave
o teu gosto envolve
o que dá sabor
às coisas vivas

isto é, o fulgor
de claras lamparinas
e a cor
daquilo que iluminam.

5 de agosto de 2025

Dois condenados conversam

- A vida toda não fui amado
mas hoje cessa esse enfado.
Hoje vou morrer! E você?

- Deixo o existir bonito 
que amei, correspondido.
Hoje vou morrer. E você?

- Sorrio de estar consolado
em ruir a vida, este cadeado.
Hoje vou morrer! E você?

- Deixo cão, esposa, filho
ainda moço, todos vivos.
Hoje vou morrer. E você?

- Eu? Ressentido e errado.
Quisera ter alguém ao lado.
Hoje vou morrer! E você?

- Aqui comigo está Cristo
e estaremos nós contigo.
Hoje vou morrer. E você?

- Eu também, meus amigos.

1 de agosto de 2025

Breve imagem de saudade

Acolher as gotas da chuva
em minhas mãos entreabertas
e vê-las um instante represadas
tomando a face da minha avó
pouco antes de escorrerem
lentas entre os meus dedos.